Bemdito

“Para Sloterdijk, futuro da Terra depende de comportamentos anticapitalistas”

Doutorando em Direito, Braulio Rodrigues analisa o filósofo alemão contemporâneo
POR Ricardo Evandro

Ricardo Evandro // Gostaria que você falasse sobre sua formação e sobre como iniciou a pesquisa sobre o filósofo alemão Peter Sloterdijk.

Braulio Rodrigues // Tenho graduação e mestrado em Direito pelo Centro Universitário do Pará (Cesupa), agora sou doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFPA. Durante a graduação, iniciei alguns estudos sobre a Filosofia do Direito e a relação com a Teoria Literária, foi então que fiz uma leitura, na época orientada pelo professor Sandro Alex, de autores como Paul Ricoeur e René Girard. Essa pesquisa acabou inspirando a minha monografia, onde escrevi um trabalho de teologia política sobre a origem do perdão. Lá investiguei a origem judaica, a interpretação cristã, e sobretudo, como o perdão chega até nós, na pós-modernidade, a partir de uma recepção do imperativo kantiano. Em suma, não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você.

No mestrado, segui a tendência da abordagem genealógica e investiguei a fundação dos direitos subjetivos e a influência do chamado nominalismo. Lá defendi o argumento de que o nominalismo foi um precursor das filosofias da linguagem na pré-modernidade. E por essa relação que estabeleci ainda na dissertação, comecei a mudar de campo e me voltar para a filosofia a partir da modernidade. Em São Paulo, por meio do professor Marco Aurélio Werle, tive um primeiro contato com o romantismo alemão. Depois, no curso do professor Marco Antonio Casanova, no Instituto Dasein, me voltei para a filosofia alemã mais recente, foi então que li Ser e Tempo, de Martin Heidegger, e me voltei também para a filosofia alemã contemporânea, onde Peter Sloterdijk aparece, autor que pode ser considerado um herdeiro e crítico de Heidegger, seja no grande tema da ontologia fundamental, ou no tema do humanismo e as implicações da questão da técnica/tecnologia. 

Ricardo // De que modo Sloterdijk contribui para o debate filosófico contemporâneo e, a partir de sua singularidade — eu diria, até excentricidade teórica –, contribui para a discussão sobre os direitos humanos?

Braulio // Sloterdijk é um filósofo preocupado com o humano tanto quanto com o não-humano, entenda-se aí a natureza e a diversidade das formas de vida. Na trilogia das Esferas, Sloterdijk propõe pensarmos o mundo como uma estufa. Essa estufa não é apenas climática, mas, também, cultural.

A saber, o mundo seria uma estrutura cuja finalidade é conter o estresse na mobilização dos entes humanos e não-humanos em suas migrações pela Terra. Não à toa, cada época possui a sua própria imagem de mundo, imagem essa que Sloterdijk ilustra por meio de diferentes exemplos na arte e na estética, com destaque para a arquitetura

No livro Palácio de Cristal (2008), Sloterdijk aponta como o edifício construído em ferro fundido e vidro, erguido no Hyde Park, em Londres, na Inglaterra – na época para sediar a Exposição de 1851 – foi modelo para a construção mais comum da modernidade tardia, o shopping center. Tal como o Palácio de Cristal inglês, o shopping é uma grande galeria, climatizada e confortável para uma habitação voltada ao consumo. A sua arquitetura orienta as formas de vida capitalistas e as suas vitrines sediam a hegemonia de uma leveza existencial fabricada, artificial. Por essa razão, o nome original do livro em alemão chama- se No Mundo Interior do Capital [Im Weltinnenraum des Kapitals]. Para responder a sua pergunta, eu diria que Sloterdijk defende que só iremos encontrar efetividade para os direitos humanos quando o design do espaço público for inclusivo e possibilitar uma coabitação responsável, seja em termos humanitários no que toca a questão da desigualdade ou do refúgio político, seja em termos ecológicos, no que toca o desenvolvimento de tecnologias que imitem processos naturais, ou seja, tecnologias harmoniosas e não predatórias do meio ambiente (ou sustentáveis), as quais ele chama de homeotécnicas. Só por meio de uma gramática de comportamentos anticapitalistas ecoísta, a vida na Terra e os direitos humanos, dos humanos e não-humanos, terão um futuro.

Ricardo // A partir de uma discussão que tivemos no Colóquio sobre o tema, com a participação dos filósofos Hiago Mendes (UFSC) e Geraldo Barbosa (UEFS), no último dia 6 de agosto no YouTube, falamos sobre a questão ambiental relacionada com a biopolítica e imunologia. De que modo Sloterdijk tem se posicionado sobre a biopolítica pandêmica pela qual vivemos?

Braulio // Sloterdijk deu uma série de entrevistas desde o início da pandemia. Entre elas, tal como o diagnóstico de Agamben, frisou o perigo do autoritarismo estatal na administração da crise sanitária. Seu mais recente livro, O estado tira as suas luvas de pelica, tradução livre e literal do título, nada mais é do que uma compilação desses textos publicados em vários jornais.

Eu diria, no entanto, que Sloterdijk não despreza o papel do Estado e dos atores sociais, ou melhor dizendo, da governança pública no que se refere à gestão da saúde coletiva, e no que nos atinge diretamente agora, o bem comum

Na verdade, em minha tese, defendo que Sloterdijk pode contribuir na formulação de um princípio bioético assentado na hospitalidade, na assistência e no cuidado das formas de vida. Para isso, seria preciso pensar em um novo tipo de aparelhamento ao Estado, cada vez mais descentralizado e localizado, voltado para as municipalidades, uma vez que, em virtude da complexidade biológica e comportamental do nosso tempo, o Estado Nacional mostra-se cada vez mais inapto para lidar com problemas locais. Como foi dito por Yuk Hui, um filósofo chinês que possui alguns diálogos com Sloterdijk, no modelo atual do Estado de bem-estar social (Welfare State), a globalização conecta as governanças regionais e torna-as dependentes da vigilância global. Além do império geopolítico, surge aí um paradoxo imunitário. Eventos locais imprevistos, como a pandemia do coronavírus, geram efeitos desastrosos em cadeia global. Somente por meio do que Sloterdijk chama de co-imunismo e da livre associação dos agentes locais, seria possível vislumbrar um Estado de bem-estar social efetivo, ou mesmo, atualizar a política de Estado nos termos do que chamo de um Estado de Imunidade Comum; um lugar político para a cidadania e a solidariedade entre todas as formas de vida. 

Ricardo // Como pesquisador amazônida, numa universidade pública localizada num dos maiores centros urbanos da Amazônia, como você pensa a iminência de uma catástrofe ambiental, especialmente neste momento de discussão sobre a demarcação de terras indígenas, povos sob processo de genocídio desde a colonização? De que modo a filosofia alemã de Sloterdijk contribui para lermos a singularidade dos problemas amazônicos?

Braulio // Acho que essa é uma pergunta muito importante e necessária. Quando comecei a elaborar o meu projeto de tese, fui profundamente provocado pela pesquisa de Maurício Pitta. Em artigos recentes, Pitta contrapõe a esferologia ao perspectivismo cosmológico de Eduardo Viveiros de Castro. Para explicar melhor a controvérsia, existe uma passagem no Esferas II (2004), onde Sloterdijk defende que, com a viagem de Fernão de Magalhães, e a primeira circum-navegação da Terra, o cosmo europeu teria sido trazido à América. Assim, não somente uma primeira globalização da metafísica teria se operado, mas, também, uma primeira globalização econômico-política, onde a principal exportação constaria no envio das instituições públicas europeias para além do mar. Pitta defende que Sloterdijk, com essa metanarrativa, corre o risco de justificar o colonialismo. Não é um diagnóstico no qual eu compartilho. Acredito que Sloterdijk está pensando a partir de um paradigma de história efetiva, outrossim, não está indiferente ao problema do esquecimento dos povos nativos. Ouso dizer que Sloterdijk pensa nos termos de uma crítica da violência originária. A saber, uma vez que a colonização se deu e a opressão ainda se manifesta de maneira tão intensa quanto difusa no racismo estrutural – que se utiliza do Estado para perpetuar a opressão colonial – como repensar o design de nossas instituições de modo a refletir nestas as nossas formas de vida regionais? Para tanto, não podemos partir do nada. Entendo que, em termos antropológicos, Sloterdijk pode, de fato, receber a alcunha de eurocêntrico. Porém, no que se refere à política, acredito que Sloterdijk acerta quando sugere que precisamos comparar modelos de governança, nativos e estrangeiros e, a partir dessa dialética na recepção, racionalizar uma nova tipologia para a política, fundamentada em nossa herança sincrética e em nossa atualidade cosmopolita.

Ricardo // Não poderia deixar de questionar sobre a polêmica filosófica ocorrida – talvez em parte causada pela mídia alemã da época – entre o Jürgen Habermas e Sloterdijk, acerca da antropotécnica, do melhoramento genético humano. Afinal, qual a influência da técnica sobre os corpos humanos e quais seus riscos? E o que Sloterdijk realmente pensa sobre isso?

Braulio // O livro Regras para o parque humano (1999) é provavelmente uma das obras mais famosas de Sloterdijk até hoje no Brasil. Acredito que isso se deve, aqui no Brasil, à qualidade significativa de habermasianos. A crítica de Habermas, na época desse texto, que já possui mais de 20 anos, dizia respeito a um suposto eugenismo ou fascismo genético advogado por Sloterdijk. Em princípio, esse texto foi uma conferência em Elmau que provocou pouco alarde até ser publicada e lida por jornalistas partidários de Habermas, e de modo mais específico, da compreensão normativa de Habermas sobre a natureza humana. Porém, a proposta de Sloterdijk é ainda mais radical e subversiva. Em uma tentativa de responder à Carta sobre o humanismo (1946) [texto de Martin Heidegger], Sloterdijk ousou dizer que não haveria como desviar da questão da técnica ao tratar de um projeto para o humanismo. Os heideggerianos até então usavam da Carta sobre o humanismo para ministrar uma cartilha tecnofóbica. Sloterdijk viu aí um paradoxo, já que o mesmo Heidegger se contrapunha a um estatuto de proteção para uma essência ou natureza humana.

É indiscutível que, na modernidade tardia, a tecnologia dá extensão ao falatório e compõe armas de destruição em massa, porém, é também a tecnologia que dá condições de possibilidade para a criação de vacinas e a “domesticação do parque humano”. Sloterdijk está na esteira da ambiguidade nietzschiana, e assim mergulha na dimensão mais polêmica da técnica, que é a intervenção no corpo e na natureza humana

Esse fenômeno conceitua como antropotécnica. Penso que essa é uma polêmica superada, ainda que relevante. As biotecnologias e a engenharia sintética estão aí para provar como a genética e a biomimética são laboratórios reflexivos indispensáveis no desenvolvimento de arquiteturas e remédios que possibilitem a nossa habitação, e pode-se dizer também, a sobrevivência de nossa espécie, nesse período tão promissor quanto desafiador que é o Antropoceno. Nos resta agora pensar como democratizar o Übermensch.

Ricardo // No livro em que traz no título um verso de Rilke, “Tu deves mudar de vida”, Sloterdijk parece, já desde o próprio título, trazer um tom normativo, ou melhor, ético. Considerando minhas perguntas anteriores, da questão ambiental (amazônica) à tecnológica, quais as contribuições de Sloterdijk para pensarmos o mundo pós-pandêmico, especialmente o caso brasileiro, em que vivemos a experiência política proto, neo, ou, então – como diz Fábio Py – “cristofascista”?

Braulio //  Em Tu deves mudar de vida (2009), Sloterdijk tece como principal objetivo dissociar a antropotécnica de um sentido exclusivamente vinculado ao planejamento genético. Lá Sloterdijk propõe pensarmos a antropotécnica antes como uma ética pessoal para a mudança de vida com vistas à autorrealização, ou melhor, ao trabalho de si mesmo. Para Sloterdijk, autorrealização e o trabalho de si mesmo só são possíveis em um cenário pós-metafísico. Precisamos abandonar os pastores do Ser, nos defrontarmos com a nossa angústia e mobilizarmos nossos afetos para causas comuns. Diante desse confronto e mobilização, surge o thymós, um tipo de orgulho heroico e cético, em síntese, pragmático.

Acredito que um dos principais problemas que assola o Brasil na atualidade é o fundamentalismo religioso e como esse busca capturar o poder e destruir fronteiras entre a esfera pública e a esfera privada. Penso que isso só foi possível porque a retórica cristofascista, para usar do conceito de Fábio Py, ainda mobiliza o eros do brasileiro, que parece cansado demais, em razão da exploração capitalista, para articular uma linguagem secular

Assisti à sua entrevista com Christian Dunker e recordo a parte em que ele frisa a possibilidade de uma ética do bem dizer em Lacan, uma ética do bom humor. Sloterdijk é influenciado por uma gama de autores e a psicanálise também está aí. Se queremos mudar de vida e nos tornarmos mais generosos a ponto de sonhar com a paz em um país – que, apesar de não ter se envolvido em tantas guerras, possui tantos conflitos civis –, então acredito que precisamos renovar nossa linguagem com humor, com a capacidade de elevação sobre as crônicas do cotidiano, ou seja, elaborar narrativas portadoras de uma leveza real, e, portanto, narrativas sobre o Brasil que sejam cientes do seu surrealismo. No momento esquizo e delirante que vivemos hoje, a fronteira originária entre o real e o surreal foi desfeita com intenção de provocar uma confusão geral na população e fazê-la assim servir ao grande Capital. É urgente desfazer essa confusão e restaurar a criatividade do brasileiro na produção de uma forma de vida autêntica e responsável.  

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.