Bemdito

“Projetos de lei incentivam desmatamento e grilagem”

Doutorando em Antropologia Social na UFPA, Maurício Borba Filho conversa sobre meio ambiente e política no Brasil de 2021
POR Ricardo Evandro

Ricardo Evandro // Maurício, pode falar um pouco de você, da sua formação, e também qual é o seu interesse no tema do estudo jurídico, mas também antropológico-filosófico, na questão da terra e do meio ambiente no Brasil?

Maurício Borba Filho // Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o convite para conversar contigo e com tuas leitoras e leitores. Atualmente, sou doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPA (PPGA/UFPA), vindo de um mestrado em Filosofia, concluído em 2020, no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPA (PPGFIL/UFPA). Mas a minha base, em termos de graduação, foi no Direito, então, esse interesse recente é como que um regresso ao lar que eu abandonei com felicidade e retornei por necessidade.

Durante o mestrado, me interessava pensar como algumas dinâmicas que poderíamos dizer biopolíticas na contemporaneidade (e no Brasil) envolvem cálculos de gestão da vida e da morte que, para além da subjetividade e do corpo humano, se inscrevem sobre formas de vidas outras-que-humanas, essas que normalmente negamos agência e jogamos no campo da natureza ou do “meio ambiente” como uma espécie de palco ou pano de fundo para a ação humana. Isso, indissociavelmente, em conjunção, não por exclusão mútua. Tratava-se, portanto, de falar em biopolítica a nível da paisagem e, a partir de uma visada multiespécies, digamos assim.

Essa necessidade de inclusão do outro-que-humano me aproximou das questões ambientais, e esse debate hoje tem como contexto incontornável a ciência da mutação climática e a emergência do Capitaloceno (ou do Antropoceno, como se queira chamar). Como falar dos conflitos que envolvem o meio ambiente é falar dos conflitos pela terra e pelos seus usos, e como esses conflitos em larga medida têm seus termos traduzidos, processados e tutelados pela máquina jurídica, bem, eis-me aqui de novo. A que papéis se presta o Direito nas disputas entre territorialidades diferentes no Capitaloceno? Essa é uma questão interessante.

Ricardo // Do ponto de vista jurídico, quais as possíveis consequências da aprovação do PL 2633/20? Do que ela trata e o que está em risco?

Maurício // O PL 2633/20, que substitui a MP 910/19 (cuja validade expirou em maio de 2020), altera disposições relativas à regularização fundiária em terras da União, constantes na Lei n. 11.952/2009 (a medida provisória que lhe deu origem, a MP n. 458/09, também ficou conhecida como MP da Grilagem), na Lei n. 8.666/93 (Lei de Licitações), e na Lei n. 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos). Eles fragilizam marcos de controle e fiscalização e dobram algumas apostas na corrida violentíssima pela privatização de terras públicas.

Eu recomendo fortemente a leitura do parecer técnico do Imazon, assinado pela pesquisadora Brenda Brito, que é extremamente claro e pontual na exposição das consequências previsíveis se tal desmonte se concretizar. Algumas das consequências elencadas no documento são o aumento do risco de titulação de áreas sob conflito; a permissão para titulação de áreas desmatadas ilegalmente; e a fragilização do cumprimento da lei ambiental após a titulação. Incentivará e premiará mais ainda o desmatamento (segundo a estimativa do instituto, 19,6 milhões de hectares de áreas federais ficarão ameaçadas) e a grilagem.

Ricardo //  Acreditas que haja uma relação entre a história colonial brasileira e sua visão sobre o que é o humano e o que é o animal, neste tempo em que o agronegócio pauta economia, política?

Maurício // Sem dúvida. Para sustentar um projeto colonial, você necessita decidir sobre o que é matável, porque custoso ou não rentável, espoliável, porque disponível, e domesticável, porque empregável num trabalho. Um empreendimento colonial não existe sem este tripé: matar, pilhar, domesticar. Você precisa desenhar uma fronteira e determinar, de um lado, quais corpos poderão e serão submetidos a cada um desses processos. 

Digamos que esse lado se chame natureza, dentro do qual situamos – entre outras coisas – a animalidade, que é um termo bastante maleável e comporta, para além dos bichos, o humano que não é tão humano assim aos olhos dessa herança perversa do humanismo. As formas de atualização dessa repartição ontológica do poder respondem a imperativos econômicos, e esses imperativos são variáveis. Mas para elas o invariável e  imprescindível é inventar uma natureza e barateá-la, torná-la disponível. É preciso que haja natureza barata para que haja terra barata. A invenção dos corpos animais passa por aí também.

Então, uma pauta econômica neoliberal e neocolonial vem com esse DNA. Ela é invariavelmente racista, machista, especista. E hoje, no Brasil, ela toma decisões que tocam quais corpos serão submetidos a condições de trabalho análogas às de escravizado, quais corpos serão exterminados porque inconvenientes, quais corpos serão desterrados, quais corpos irão morrer de fome e quais se alimentarão com comida encharcada de veneno.

Ricardo // Recentemente, o Cacique Yssô Truká me concedeu entrevista sobre as manifestações indígenas contra a aprovação da PL 490/2007. Na ocasião, uma de suas falas foi sobre como o ataque às terras  indígenas é uma continuidade do processo colonial. Sobre isso, acreditas que a pauta no Congresso, que a bancada do agronegócio pretende levar à frente, pela aprovação da PL 2633/20, tem alguma relação com o PL 490/2007? Há alguma estratégia nisso, grilagem e genocídio indígena?

Maurício // Um mote recorrente empregado no debate público por agentes que transitam pelo espectro de interesses da Frente Latifundiária responde bem a isso: a ideia (falsa) de que “há muita terra para pouco índio”. Obviamente, o problema de quem diz isso não é que haja muita terra para pouca gente. Fosse isso, viveriam escandalizados com a concentração fundiária, e projetos de lei como esse não existiriam. Não é essa a questão. O problema da Bancada Latifundiária é que haja alguma terra (que não é muita) para gente que não está interessada em transformar tudo em pasto ou monocultura de soja. Isso atrapalha os negócios.

Bolsonaro já disse que, no que dependesse dele, não haveria mais demarcação de terras indígenas e quilombolas no país, porque esse tipo de coisa “atrapalha o Brasil”. Ele só poderia ser mais claro em suas intenções se dissesse que, se dependesse dele, haveria uma política ativa de extermínio levada a cabo com o selo do Estado. Alguém duvida que esse seria igualmente o desejo da Bancada do Boi? 

Eles não podem exterminar o corpo, mas o PL 2.633/20 permite outra coisa, que é desterrá-lo. É o suficiente, resolve o impasse. Imagino que devam pensar nisso tudo como um grande caso de bolar estratégias para segurar os lucros cessantes diante das interdições à apropriação e à exploração indiscriminada da terra. Se alguém é violentado no processo, bem, it’s business

Na Amazônia, a gestão desses negócios passa por um monstrinho de três cabeças: a primeira é togada, vem do aparelho jurídico-cartorial; a segunda, fardada, vem das polícias; e a terceira, armada até os dentes, vem da pistolagem. Os atos que configuram grilagem e as suas consequências, tolerados (quando não endossados) com tranquilidade pelo Estado brasileiro desde a ditadura civil-militar, são referendados e viabilizados pela mão desse monstro. O PL 2.633/20 vem para dar uma ajudinha. Emprestando a expressão de Alfredo Wagner Berno de Almeida, tem um quê de “intransitivo da transição”. 

Indo um pouco além, eu diria que o PL 2.633/20 e o PL 490/2007 devem ser vistos como partes de um ecossistema legislativo degradado. Eles compõem a paisagem onde estão a PEC do Teto dos Gastos e as Reformas Trabalhista, Administrativa, e por aí vai. Cada uma dessas peças legislativas pode ter vida própria e sem dúvida causaria estrago sozinha, mas o fato é que hoje elas só existem em relação, e é assim que elas funcionam de maneira excelente – uma instrumentaliza melhor a outra, puxa para cima, potencializa. Elas se permitem causar um estrago irreparável.

Vista de longe, essa paisagem é quase que um negativo da Constituição Federal de 1988. Ela tem sido cultivada a olhos vistos (a despeito da fumaça produzida) e, politicamente falando, com o mínimo de dispêndio calórico, porque se passa sobretudo a nível infraconstitucional.  

Ricardo // Como achas que pessoas não-indígenas, como nós, mesmo que vivendo e atuando num centro urbano da Amazônia, podemos ser afetados caso a PL 490/2007 seja aprovada? E como achas que se pode resistir a estes projetos de lei? Passa por alguma mudança de compreensão de mundo, de vida…?

Maurício // Para mim, bastaria simplesmente dizer que é intolerável a perspectiva de viver num país que normaliza processos brutais de pilhagem, apagamento e extermínio e ainda premia seus executores com a projeção de retornos financeiros extraordinários, mesmo que isso não bata “diretamente” na minha porta. Mas, para algumas pessoas, isso pode soar um tanto vago e abstrato, e para estas seria o caso de lembrar que a nossa vida em breve também ficará bem mais cara, sufocante e vulnerável. Investir num caminho que premia e intensifica modelos predatórios de exploração da terra, além de ser uma escolha economicamente irracional, é rifar a possibilidade de um futuro habitável para nós. Dizer isto não é recorrer à imagem de um futuro “apocalíptico”: apenas olhe para o lado e pense num 2021 magnificado, piorado, ainda mais degradado. Com mais alguns imbecis desfilando de foguetinho no espaço enquanto o mar de gente que morre porque não tem onde aterrar aumenta. 

Quanto às formas de resistência, minha posição me deixa um tanto desconfortável para apontar caminhos categóricos. Não estou autorizado a propor esse tipo de coisa, tampouco desejo fazer isso. Mas acho que poderia pontuar algumas coisas.

Quer queiramos ou não, estamos reféns de um desafio crucial agora, que é 2022, que coloca muita coisa em jogo. Há uma dimensão dessa luta que passa pela preservação e recomposição dos cacos do que foi destruído de 2016 para cá.

E construir para além deles, óbvio. Então, a primeira resposta possível seria: é necessário resistir a Projetos de Lei desse tipo antes que eles percorram com sucesso todo o rito do processo legislativo, ou seja, resistir à sua aprovação pelos meios normais do exercício de pressão social sobre as(os) congressistas, para não ter que resistir aos seus efeitos. Eu adoraria poder dizer algo ligeiramente mais radical (ou menos conservador), mas isso seria um desatino no momento.

De qualquer modo, acho razoável ter motivos de sobra para ser cético a esse respeito. Em larga medida, as alternativas “normais” às vezes me soam como uma governança perfumada do genocídio e do ecocídio, dois instrumentos preferidos do Estado brasileiro, que em certos casos os administra (isolada ou cumulativamente) de maneira ostensiva (o genocídio das populações negras periféricas, por exemplo), e, em outros, prefere administrá-los em doses homeopáticas, ao sabor da vontade dos acionistas. Esses são os destroços e a tempestade continua a soprar, às vezes mais feroz, às vezes menos. 

As mudanças de compreensão de mundo são muito importantes, mas se da porta da nossa cara para fora estivermos num mundo que tolera a existência de imbecis bilionários desfilando de foguetinho no espaço, pode ter certeza que ainda estaremos presos num caminho errado. 

Outros povos que efetivamente cultivam formas outras de viver conseguiram e ainda conseguem segurar a fina rede cosmopolítica que sustenta seus mundos, a despeito dos assédios e da violência que partem do lado de cá. Há um certo consenso que paira no ar de que, neste momento crítico, poderíamos aprender mais do que duas ou três coisas com eles, e eu concordo fortemente com isso.

Dito isso, eu intuo que as formas de resistência e confronto mais decisivas deveriam correr fora do campo das chantagens burocráticas, e penso que nós, que estamos no campo do pensamento crítico, deveríamos aproveitar o que ainda nos resta de tempo e “liberdade” (trezentas, trezentas-e-cinquenta aspas aqui) para também (é possível fazer coisas diferentes ao mesmo tempo) especularmos sobre isso, e é certo que iremos errar estrondosamente em muitos casos.

Digo isso com um certo constrangimento, porque errar é um luxo nosso: há os que não puderam e os que não podem errar. E um luxo não se sustenta sem um impacto na outra ponta. Mas esse luxo ficará mais caro para nós também. Então, precisamos ir para além disso. Também temos de agir: não dar com a cara no muro da palavra e, sim, pulá-lo. Isso é urgente (reviro os olhos porque dizer isto é banal, é chover no molhado). Mas o como agir é uma resposta coletiva e, em muitos casos, necessariamente situada. Então paro aqui.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.