Bemdito

Pode uma lei mudar o destino das cidades brasileiras?

Os 20 anos de Estatuto da Cidade e os riscos de uma festa indesejada
POR Rodrigo Iacovini

No último sábado, 10 de julho, o Estatuto da Cidade – como é conhecida a Lei Federal 10.257 de 2001 – completou 20 anos. Já há alguns meses, diferentes organizações, movimentos, acadêmicos e militantes têm realizado ações comemorativas. Artigos, vídeos, publicações, entrevistas, séries de postagens, webinários – além das lives, o símbolo máximo dos tempos pandêmicos – e uma infinidade de outras iniciativas têm aproveitado a data para resgatar a trajetória do Estatuto, bem como fazer balanços, debater limites e potencialidades.

No Instituto Pólis, por exemplo, fizemos uma série de entrevistas com profissionais que foram de nossa equipe e estiveram diretamente envolvidos no processo de aprovação e difusão do Estatuto da Cidade. Depoimentos como os de Raquel Rolnik, Nelson Saule Júnior e Renato Cymbalista resgatam a complexidade do processo de discussão, aprovação e implementação da lei. Para quem queria se aprofundar um pouco mais no conteúdo, lançamos uma série de postagens explicando conceitos, princípios e instrumentos trazidos pelo Estatuto.

Outras organizações têm realizado discussões e balanços sobre os impactos da lei na configuração das cidades brasileiras. Nesse sentido, vale a pena conferir o registro do seminário “O Futuro do Estatuto da Cidade”, que reuniu uma série de pesquisadores, gestores públicos e militantes envolvidos com o tema. O evento foi realizado por um grupo também diverso de organizações, como a ONU-Habitat, a agência de cooperação alemã GIZ, o Instituto de Arquitetos do Brasil/Departamento São Paulo, o Cities Alliance e a Universidade Nove de Julho. 

Ao longo dos últimos meses, o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo têm promovido um ciclo de debates em torno dos 20 anos do Estatuto. As conversas trazem juristas que são tradicionalmente referências na área, como Betânia Alfonsin, Edésio Fernandes e Nelson Saule Júnior. Lembrando que as cidades brasileiras são muito heterogêneas entre si, alguns eventos têm acertadamente proposto ainda recortes específicos em suas discussões e avaliações, como propõe o seminário 20 anos do Estatuto da Cidade para a Região Nordeste, a ser realizado na próxima semana, por universidades e organizações de Fortaleza.

Em que pese o olhar crítico e aguçado dessas várias iniciativas e dos especialistas convidados para essas discussões, precisamos estar alertas para o excessivo destaque que conferimos ao Estatuto no debate público sobre as cidades brasileiras. É inegável que ele constituiu um marco da ordem jurídico-urbanística brasileira, pois inaugurou no país uma nova etapa na disputa pelas cidades, estabelecendo novos campos de batalha e novas armas a serem utilizadas.

É importante reconhecer ainda o avanço que significou a reunião, dentro de uma mesma norma, de um conjunto significativo de princípios, diretrizes e instrumentos, sob o objetivo de garantir “direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. Vitória do movimento urbano brasileiro, pois essa positivação do direito à cidade o colocou como centro da ação pública de desenvolvimento urbano. 

Novas dimensões

Contudo, a lei é fruto do seu tempo, das concepções vigentes e da correlação de forças vivida à época, por isso essa própria concepção de direito à cidade expressa pelo Estatuto não corresponde ao que socialmente se reivindica como tal direito. Provavelmente, se deixada inteiramente a cargo do movimento urbano brasileiro à época, a redação seria muito melhor. Mesmo assim, ainda seria tímida na dimensão de gênero e também antirracista, questões centrais para compreender as lutas em torno do direito à cidade, mas apenas recentemente incorporadas de fato à luta de muitos movimentos urbanos. 

Raquel Rolnik vai ao centro da questão em sua entrevista, quando aponta que, apesar de ser também fruto das tensões, pressões e reivindicações do movimento da reforma urbana, a linguagem subjacente à formatação do Estatuto dialoga principalmente com a parcela das cidades produzida pelo mercado imobiliário. “A linguagem da construção do Estatuto (…) trabalha, basicamente, com os instrumentos clássicos e históricos do planejamento urbano, dos planos diretores, e que – isso a gente pode dizer, hoje, muito claramente – eles foram desenhados e definidos por e para o mercado imobiliário. Eles dialogam com as morfologias e os produtos imobiliários produzidos por este mercado”.

Além da produção material de cidades, que ocorre fora do mercado imobiliário formal, há uma série de outras dimensões – política, simbólica, afetiva, etc. – do fenômeno urbano que permaneceram ausentes das previsões contidas no Estatuto.

Não se trata de desconsiderar a importância da lei ou de deixar de aproveitar a efeméride de seus 20 anos para analisar seus impactos, mas é importante que tenhamos claro quais são os limites que já trazia desde a sua aprovação. Essa clareza é fundamental para que possamos avaliar de forma ponderada seus impactos, como fez Renato Cymbalista em sua entrevista, ao responder se as expectativas da época da aprovação do Estatuto teriam sido atendidas ao longo de sua implementação. 

“Podemos falar de dois tipos de expectativas: a primeira, do copo meio cheio, que esperava a partir do Estatuto ter maiores condições de legalidade para aplicar instrumentos com potencial de democratização da terra urbana, como o Parcelamento e Edificação Compulsórios, o IPTU Progressivo no tempo, as ZEIS, entre outras. Essa expectativa se cumpriu, esses instrumentos são aplicáveis. Por outro lado, expectativas mais utópicas, que esperavam uma revisão estrutural das desigualdades das nossas cidades, se frustraram em grande medida, pois as cidades são tão desiguais quanto eram há 20 anos, em vários aspectos”, diz Cymbalista.

Se o Estatuto da Cidade estivesse no divã, talvez se perguntasse: era justo que colocassem sobre os meus ombros toda essa expectativa? O que eu, uma simples lei, poderia fazer para mudar séculos de desigualdade e enfrentar forças econômicas, sociais e políticas historicamente estabelecidas? Como alguns filhos adolescentes, talvez ele nem desejasse uma festa de aniversário tão grande quanto aquela organizada pelos seus pais e mães. Não queria uma atenção especial ou desmedida, apenas desejava secretamente que seus irmãos e irmãs – como a mobilização social e as práticas urbanas insurgentes – gozassem da mesma atenção.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.