Bemdito

Flores para Roberta

Transfeminicídios e o privilégio cis em uma sociedade transfóbica
POR Geórgia Oliveira

O que você fez da sua vida até completar 35 anos? Ou o que você quer fazer até essa idade? Quais são os seus anseios e desejos? Como você se sentiria se sua expectativa de vida fosse de breves 35 anos? E se as causas dessa expectativa de vida ser tão baixa fossem a intolerância e a violência? Esses questionamentos não são aleatórios: fazem parte da vida de pessoas trans e travestis e de seus familiares e amigos. Afinal, o Brasil é o país mais letal para essa população em todo o mundo e restringe aos 35 anos o tempo médio de vida dessas pessoas.

De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), divulgados em junho, mês da celebração do orgulho LGBTQIA+, 80 pessoas trans foram mortas no primeiro semestre de 2021, e 33 sofreram tentativas de assassinato. O relatório ainda dá conta de que oito em cada 10 notícias com as palavras “travesti” ou “mulher trans” na categoria “notícia”, nos principais mecanismos de busca, estão relacionadas à violência ou às violações de direitos humanos. A maior parte desses assassinatos é transfeminicídio: as mortes de mulheres trans ou travestis por discriminação relativa à identidade de gênero, que nem sempre são reconhecidos pelas autoridades públicas como tal.

Se a identificação e o processamento de feminicídios de mulheres cis já contam com dificuldades, seletividade penal e falta de parâmetros públicos nas investigações, os assassinatos de mulheres trans e travestis são ainda mais invisibilizados. Seja pela desconsideração das motivações de ódio e discriminação ligadas aos casos, seja pelo desrespeito à identidade de gênero das vítimas, inclusive com a utilização de prenome masculino pelo qual não mais se identificam – o que constitui grave violação institucional -, as vidas de pessoas trans são frequentemente desrespeitadas. A previsão penal de feminicídio como um crime motivado pelo menosprezo ou pela discriminação à condição de mulher parece não alcançar as mulheres trans e travestis, e os assassinatos contra elas raramente são processados pelos órgãos policiais e judiciais como crimes de gênero.

Ser trans no Nordeste

No Ceará, Luana, Bebê, Pietra Valentina, Keron Ravach foram algumas das vítimas de transfeminicídios em 2021, além de duas vítimas não identificadas, uma em Maracanaú e outra em Russas, mortas em abril e junho deste ano. Em 2020, de acordo com o relatório “A dor e a luta”, da Rede Observatórios de Segurança, foram 13 transfeminicídios registrados em todo estado, o que marca o Ceará como um lugar perigoso para a população trans.

Em Pernambuco, apenas no espaço de um mês, entre junho e julho de 2021, ocorreram pelo menos quatro transfeminicídios: Roberta Silva, Fabiana da Silva Lucas, Kalyndra Nogueira e Crismilly Pérola foram brutalmente assassinadas.

O caso de Roberta chamou a atenção pela crueldade: ela, que estava em situação de rua, dormindo próximo a um terminal rodoviário de Recife, teve 40% do seu corpo queimado pela ação de um adolescente de 17 anos. Roberta teve de amputar os dois braços antes de falecer em razão da gravidade das lesões, na manhã do último dia 9.

Como ensina a professora e pesquisadora Letícia Nascimento, em seu recente livro sobre Transfeminismo, lançado pela coleção Feminismos Plurais, precisamos questionar se afirmações como “as vidas das mulheres importam” abrangem mulheres transexuais e travestis. Pensar os feminismos de forma interseccional – essa palavra que entrou na moda, mas que representa uma práxis inclusiva poderosa para aquelas que a estudam – significa desnaturalizar o privilégio cis e ouvir, aprender e estudar o que dizem pessoas trans.

Viver como uma pessoa cisgênero numa sociedade transfóbica é mais um privilégio que naturalizamos, da mesma forma que eu, você e a maior parte das pessoas cis naturalizam viver além dos 35 anos de idade. Naturalizamos ter afeto, cuidado e, principalmente, se não enfrentamos outras opressões de gênero ou raça, naturalizamos a possibilidade de viver e falar sobre nossas vidas sem a presença constante da violência; sem a hostilidade de enfrentar relações de opressão ou a ameaça de ser agredida ou discriminada por ser quem se é.

Mencionar a violência quando falamos de existências trans e dissidentes, ao mesmo tempo que é essencial para combater a invisibilização dessas opressões, é também em si mais uma forma de violação de um sistema social (ou cistema, como apontam muitas transfeministas) que é ordenado para excluir quem não é cisgênero, heterossexual e branco.

Antes de falecer, aos 32 anos, Roberta recebeu no hospital flores e bilhetes de apoio e afeto, inclusive de artistas. Ela não pôde ver nenhum dos presentes, porque estava em estado grave. Mas o que é ainda pior, como a ativista e pesquisadora Dália Celeste frisou de forma extremamente dolorosa, é que ela não os recebeu na plenitude da sua vida: Roberta precisou ser queimada para receber flores e bilhetes.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.