Bemdito

Trans-histórias: os infortúnios de ir e vir

As perigosas relações entre moral, saberes e poderes que emergem das trans-histórias
POR Humberto Pinheiro
Dandara dos Santos, torturada e morta à luz do dia em 2017

As perigosas relações entre moral, saberes e poderes que emergem das trans-histórias

Humberto Pinheiro
hpf1808@gmail.com

No coração dos bem ditos e dos benditos, os mal ditos, os malditos, que assim foram e são amaldiçoados pelas boas intenções daqueles. Mas quando falo em maldição não quero lembrar uma distração barata, como essas que imaginam os motivos místicos de qualquer cotidiano, como esses jogos astrais e constelações familiares que mal disfarçam as misérias dos que neles creem ansiosamente. As maldições a que me refiro são bem concretas, duras, afiadas, penetrantes, mortais, quase sempre sem vacilar com a sua fé perversa, um bem empenhado nos arremessos da lança para cravar o seu estilo moral nos “cus de Judas”. Aqui, devemos entender literalmente “arremesso”, “lança” e “cu”.  

Os ofícios dessas pragas são de um corpo para outro corpo, mais especificamente, de um corpo branco, masculino, heterossexual, cisgênero, do patriarcado colonial, capitalista e bolsonarista contra todos os outros corpos que ele usa com e para as suas violências, contra todos os outros corpos amaldiçoados pelas suas diferenças (e desigualdades) raciais, sexuais e de classe e pelos seus sofrimentos e sacrifícios com os quais é tramada a nossa rotina macabra heteronormativa de existência média de entrar e sair dos lugares, de ficar lado a lado, de pegar na mão, de ter filhos, de sair com os filhos, de ter um luto, mas antes de não ser violentado ou morto em nenhuma dessas circunstâncias. É preciso pensar nas violências que nos legam e sustentam o que chamamos de normalidade. É preciso lembrar que democracia é uma experiência entre alguns quarteirões com elevados preços de metro quadrado de qualquer cidade brasileira. É preciso saber que ter garantias de direitos ainda é um privilégio de um sexo, de uma cor, de um gênero. Assim nas leis, como nas práticas.  

A história é a seguinte, ou a trans-história é a seguinte: a expectativa de vida de uma pessoa transexual no Brasil é de 35 a 40 anos. É praticamente a metade da de um bairro rico por aqui. São vidas concretamente amaldiçoadas pelo desprezo, pela raiva e pelas agressões de suas e nossas famílias, de instituições públicas e privadas, dos imaginários e representações ficcionais, das narrativas que inventam as nossas percepções e os nossos desejos e vice-versa. São vidas física e simbolicamente execradas, e por isso mesmo mostrando como o nosso sanguinário mundo dos homens de bem e dos bons costumes funciona. Nas palavras de Fernanda Farias de Albuquerque, “a sociedade que não sabe me inventar sem me desprezar”.  Mas essa invenção é mesmo para produzir desprezo, desvio, degeneração, distúrbio, pecado, delinquência, maus costumes, que inventam a ordem e a correção das condutas, com seus capangas oficiais, como igrejas, Estados, mercados, literaturas, ciências da mente e do corpo, sistema de justiça, a imprensa. Toda trans-história deixa emergir essas relações perigosas entre a moral, os saberes e os poderes. A escritora Amara Moira lembra que “as operações de prisão para travestis e prostitutas contaram com amplo apoio da mídia hegemônica”. 

Sim, muitos jornais têm nas suas trajetórias a tinta suja de sangue. Foi pela circulação desses periódicos, inclusive, que Fortaleza viu na primeira metade do século XX uma obsessiva campanha contra o chamado meretrício que tomaria o centro da capital do Ceará, tornando, segundo essas folhas diárias, suas ruas e casas, com seus sons, seus cheiros, suas vistas, seus gostos e toques, qualquer ou muita coisa de indecente. Mas esses discursos não falavam da prostituição. Consorciados com a polícia, o comércio, a prefeitura, as orações, o matrimônio, os privilégios materiais e simbólicos, esses impressos queriam chocar (como quem incuba, assusta, esbarra) a desgraça como corpo e lugar, dando a sua contribuição para levantar os dividendos do que fantasia e pratica como escória. São esses os termos para um preciso vocabulário sentimental dessa e de qualquer cidade. Foi muito nessas condições que uma cidade viu seus espaços e presenças se formarem. Cuidado ao gostar de onde você vive, de onde você visita, de onde você quer conhecer, porque todo lugar de morada, todo lugar de passagem foi e é também um lugar de barbáries, como a nossa história da sexualidade. 

Como os dedos polegares de um filho martelados por um pai que não quer que ele “desmunheque” e como a morte de um filho preferida por um pai a tê-lo como homossexual, tornando-se este último pai (mas os dois são o mesmo) o atual presidente do Brasil, Fernanda Farias de Albuquerque teve sua vida moída por tentar viver as suas vontades de prazer e de amor. Da infância no interior da Paraíba, onde ouvia frequentemente que devia “aprender a ser homem”, que iria para o inferno e sofria surras e abusos sexuais, passando pela prostituição em Recife, Salvador, Europa, até ser confinada na penitenciária italiana de Rebibbia por tentativa de homicídio, Fernanda tentava e lutava apenas pelo direito à identidade que queria ter. Como todo movimento e contra-movimento (contingentes ou não) são lutas políticas, sua trajetória foi um “brado retumbante” (e inaudível) por democracia. Por isso não foi da casualidade o seu encontro narrativo naquela prisão nos anos 1980 com o ex-integrante das Brigadas Vermelhas Maurizio Jannelli.

Desse conhecimento um do outro, de suas histórias, de suas histórias transgressivas veio um livro, uma trans-auto-nossa-biografia de Fernanda escrita a quatro mãos, ou melhor, por muitos bilhetes pelos quais Fernanda e Maurizio contrabandeavam conversas entre as celas. Publicado originalmente em 1994 na Itália e tendo a primeira edição no Brasil um ano depois pela editora Nova Fronteira com o título A princesa: depoimentos de uma travesti brasileira a um líder das Brigadas Vermelhas, esse livro é a um só tempo o nosso conto escancarado e inédito, a nossa violência acostumada e quase nunca sentida e encarada, embora ela nos olhe e nos distinga tão bem. A trans-história de Fernanda é a nossa história. É o que ainda fazemos com quem tenta levar às últimas consequências a “brincadeira” de fazer de duas metades de coco os seus primeiros seios ou de quem ousa sair da escuridão da noite de um parquinho depois de trocar suas calças compridas de homem para vestir “calcinhas de mulher”. Nos corações e nas terras das luzes, sempre as trevas.

Humberto Pinheiro é historiador e desenvolve pesquisa em história da sexualidade

Humberto Pinheiro

Historiador e pesquisador em história da sexualidade, também tem pesquisas na área de história da literatura e do romance moderno.