Bemdito

A fome também é professora

Em um país de famintos e vulneráveis, a esperança se torna o maior combustível da política
POR Paula Brandão

“O que eu aviso aos pretendentes a política,
é que o povo não tolera a fome.
O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome.
A fome também é professora.”

Carolina de Jesus.

“Até vocês, feijão e arroz, nos abandonaram! Vocês que eram amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes. Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está no alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo…(Meus filhos) comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo o que nos rodeia.”

Em 1955, Carolina de Jesus, escrevia para enganar a fome e dizia que, como era pobre e não podia assistir a um espetáculo, Deus enviava para ela sonhos. Como catadora, saía todos os dias em busca de vender o que encontrava pelas ruas para alimentar aos três filhos e a si mesma. A fome foi personagem central em sua obra e tinha cor: amarela. Quando sentia fome, via com um filtro amarelo que a impedia de enxergar outras tonalidades do mundo.

Brasil, 2022: 33,1 milhões de brasileiros estão passando fome! Essa foi a manchete dos jornais que circularam em todo o país. Assistindo as reportagens, vi que a fome tem gênero, raça e classe: são mulheres negras e pobres, que em nada se distanciam da trajetória narrada, exaustivamente, por Carolina, há mais de 67 anos. Estão nas favelas, acordando e dormindo sem ter comida, água, voltaram a cozinhar o alimento unitário na solidão da panela, à carvão, pois não sobra dinheiro para um gás que custa R$ 140,00.

Jornalistas que cobriram o que acredito ser o maior escândalo vivenciado no Brasil nos últimos anos, entrevistaram mulheres, em seus barracos, tentando traçar estratégias de sobrevivência. Uma delas, idosa, dizia que morava com a filha e cinco crianças. Tinha feito um fogão improvisado com um buraco para colocar o carvão e o fogo, e afirmava que estava endividada. Fez pequenos empréstimos com vizinhos e do dinheiro que entrava agora, mais da metade era para pagar as dívidas.

Um dia desses, dei uma entrevista para a TV Assembleia para comentar uma pesquisa do Prevu, que afirmava ser as mulheres chefes de família aquelas que mais pediram empréstimo no último ano. Ora, vejam bem, eu disse que isso nada tinha de positivo pois, inversamente, significava que são elas as mais endividadas! São elas que ficam com seus filhos e netos procurando saídas para o dia a dia.

Sim, a fome é urgente! Quanto mais miserável um povo, mais fácil de ser manipulado porque a fome não habilita para escolha. Mata, aniquila a dignidade e manipula os sentidos. Lembro da gestão petista de Lula da Silva, que tirou o país do Mapa da fome, se dizer que agora o povo queria mais. Queria melhores condições escolares, de saúde e viajar. É isso aí, quando ao povo é dado o mínimo para se despreocupar com a geladeira, o sonho de outras conquistas é possível. A fome não vem da pandemia ou de uma perspectiva econômica, ela é uma escolha política, como diz Yuval Harari, em Homo Deus:

“Durante os últimos cem anos, desenvolvimentos tecnológicos, econômicos e políticos criaram uma rede de segurança cada vez mais robusta, que separa a humanidade da linha biológica da pobreza. Ondas maciças de fome ainda atingem algumas regiões de tempos em tempos, mas não são exceções, quase sempre provocadas por políticas humanas e não por catástrofes naturais. Não ocorrem mais surtos de fome por causas naturais; há apenas fomes políticas. Se pessoas na Síria, no Sudão ou na Somália (e no Brasil!) morrem de fome, é porque alguns políticos querem que elas morram.”

Ontem, assisti a um vídeo no qual Helena Vieira, pesquisadora e escritora que tem se revelado uma grande intelectual brasileira disse, assertivamente, que a esquerda se encarrega de dar sempre más notícias, e que deveria se concentrar no desafio de reconstruir a democracia, chamar as pessoas para um projeto de futuro que tenha vida e esperança, e fazer com que o povo consiga se sentir nesse lugar. 

Assim, finalizo com uma boa notícia: são justamente essas mulheres empobrecidas que representam mais da metade da população que vota no Brasil, e falta pouco menos de 4 meses para que elas elejam políticos(as) comprometidos(as) com suas causas. A fome não pode esperar, é ameaçadora, e precisa de resposta urgente, agora! Que o país restabeleça a dignidade de sair desse caos imediato, e que tenhamos esperança para falar de saciedade, vida, amor e mudança!

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).