Bemdito

A corrida do ouro e a fome

Charles Chaplin e sua batalha contra o capitalismo brutal ajudam a pensar sobre os abismos sociais do Brasil de hoje
POR Olivia B. de Avelar

Um homem, vestido de preto e mal agasalhado, está dentro de uma cabana. A cena sugere que o clima, do lado de fora, é hostil – há vestígios de neve nas portas e janelas. O barraco de madeira é cheio de frestas, geme e zune com o vento forte e parece ser frágil, aparentando que está, a qualquer momento, prestes a desabar e se desfazer em telhas e tábuas que sairão rodopiando junto com os flocos de neve. Ao fogão, o homem, concentrado e com destreza, prepara um único prato em uma caçarola velha e amassada – ele está cozinhando uma bota.

Finalizado o preparo, ele retira a iguaria da panela e a serve em um prato. Outro homem, desconfiado, está sentado à mesa, aguardando a frugal e inquietante refeição. O cozinheiro, então, com o olhar faminto e resignado, retira a sola da bota como quem separa de um peixe a espinha e divide com o companheiro o jantar que os alimentará nessa noite fria e esquecida. O banquete dos humilhados é duro, sem sabor, não é nem feito de comida, não é nem alimento – solado, cadarços e couro são, um por um, devorados em uma das cenas mais famosas, críticas e melancólicas da história do cinema. Uma das cenas mais lembradas da venerável e inesquecível filmografia concebida pelo gênio Charles Chaplin.

A corrida do ouro – 1925, disponível no YouTube – é o filme pelo qual Charles Chaplin disse que gostaria de ser lembrado. A história se passa no Alasca, durante a Corrida do Ouro, em 1898, e Carlitos tenta a sorte como garimpeiro. Em sua aventura, ele enfrenta uma severa nevasca, divide um casebre com desconhecidos e passa fome. Porém, a obra de Chaplin transcende o tempo e essa cena clássica pode ser assistida em qualquer país do mundo e em qualquer ano, pois ela sempre irá trazer à tona, de forma sensível, porém pungente, a dureza e a desolação daqueles que passam fome.

O que a arte de Charles Chaplin faz, com poucos minutos de cena em uma obra do cinema mudo, é escancarar uma ferida de maneira a nos captar pela ternura, não pelo choque. O gênio do cinema transforma uma realidade brutal em uma imagem sublime e artística – não para diminuir sua capacidade crítica e denunciante -, mas, antes, para transformar um filme sobre um dado período da história dos Estados Unidos em uma obra sobre a condição humana. A triste e revoltante condição que coloca a necessidade básica de se alimentar de uma imensa quantidade de pessoas como a condição e o meio para que uma ínfima minoria possa lucrar e acumular muita riqueza. Esse detalhe também não passa despercebido ao olhar arguto e genial de Chaplin: várias cenas do filme também mostram jantares luxuosos e comida em abundância – servindo ao público o contraste entre a falta e o vazio e a abundância e o excesso.

Muitas vezes, ao tocarmos no assunto da fome, em nosso país, o tema é tratado pela sociedade juntamente com a ideia de escassez e de precariedade: vimos, recentemente, reportagens sobre as pessoas que disputavam ossos e carcaças em supermercados, açougues e mercados, por todo o país. Mais dolorosamente, vídeos circulavam pela internet, onde pessoas aguardavam o caminhão do lixo para recolherem sobras que, segundo eles, “ainda estavam boas para comer”. O preço dos alimentos não para de subir e, a cada dia, mais pessoas entram na zona cruel de insegurança alimentar.

Infelizmente, ao juntarmos as duas ideias, a fome e a escassez, estamos fechando os olhos para a realidade ainda mais ultrajante e injusta quando o assunto é a quantidade de pessoas que não tem o que comer: a fome é resultado direto da sobra, do excesso e da extrema abundância. Enquanto o personagem Carlitos se lançava em uma insólita e insalubre busca por trabalho, no filme que ilustra essa coluna, todos os seus esforços não se transformavam sequer em uma renda básica que permitisse a ele viver com dignidade e ter com o que se alimentar. O ouro que ele e tantos outros miseráveis buscavam nas montanhas geladas do Alaska não estava lá, mas sim nos bolsos dos ricos magnatas e banqueiros que se aqueciam e se refestelavam com jantares pornográficos, seguros e satisfeitos, em seus palacetes nas grandes cidades por todo aquele país.

O Brasil é um país muito rico, não nos faltam terras sendo cultivadas, frigoríficos cheios de carne e supermercados abarrotados de alimentos. Porém, o que nos falta é ver estampado em todos os jornais e assistir circulando em vídeos pela internet não o rosto dos famintos e dos desesperados, mas sim as caras alimentadas e infames de todos aqueles que fazem da fome de tantos o seu próprio ganha pão, o seu próprio negócio lucrativo, a sua imoral riqueza.

A fome, no Brasil, é um projeto – entre tantos outros atos ultrajantes – de humilhação e de subjugação de muitos pobres em nome da ganância e do esbanjamento nefasto de poucos ricos. O real retrato da fome não é esquálido, raquítico, curvado, devastado e pobre.

O real retrato da fome é o rosto de seus causadores, que usam terno e gravata, multiplicam seus lucros em paraísos fiscais, precarizam as relações trabalhistas, manipulam os projetos de distribuição de renda para fins eleitoreiros, mentem para o povo sobre remédios milagrosos, fazem uso da fé e das fake news para desinformar o povo e permanecer no poder, se utilizam de mão de obra análoga à escravidão para enriquecer a custa dos funcionários, sonegam impostos, não admitem a reforma agrária e financiam a grilagem de terras.

No Brasil, a verdadeira cara da fome é a cara daqueles que para serem ricos fabricam a miséria e a pobreza que os alimentam.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.