Bemdito

O fim do Bolsa Família

O fim do exitoso programa de transferência de renda federal amplia o desmonte das políticas sociais no país
POR Tainah Simões Sales

Foi anunciado o fim do Programa Bolsa Família, a “troca” de uma política pública consolidada por uma incerteza em meio ao caos já instaurado. Não se tem notícias sobre os recursos orçamentários do novo Auxílio Brasil, sobre como vai funcionar, quais serão as contrapartidas etc. Que estudos embasaram a decisão pelo fim do Programa Bolsa Família e início de um novo programa? Quais são as melhorias propostas? Não se sabe.

O que se sabe é que, com um custo de apenas 0,5% do PIB, o Bolsa Família beneficiou milhões de famílias e conseguiu reduzir a pobreza e a pobreza extrema, diminuir a mortalidade infantil, aumentar a participação escolar de crianças e jovens, reduzir a desigualdade regional e social, além de melhorar indicadores de insegurança alimentar entre os mais vulneráveis.

Embora críticas ao programa possam ser feitas, os resultados positivos foram evidenciados em milhares de estudos sobre o tema registrados na Plataforma Lattes do CNPq.

Sabe-se que a transferência direta de renda não é suficiente para garantir a erradicação da pobreza. Dinheiro não necessariamente garante uma vida com padrões mínimos de dignidade, embora possa contribuir para tanto. A pobreza é fenômeno multifacetado, devendo ser analisada sob o prisma da privação de liberdades e oportunidades, conforme nos ensina Amartya Sen. A partir dessa concepção, o Estado poderá elaborar políticas públicas no sentido de, efetivamente, contribuir para a diminuição da desigualdade social e da pobreza. O cerne da questão deveria ser a ausência de liberdades e de oportunidades. Não é, portanto, o “não ter”, mas é o não poder sequer ter a oportunidade de ter.

O crescimento econômico não garante diretamente a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. Por outro lado, a expansão dos serviços de educação, saúde e saneamento básico, por exemplo, aumenta as capacidades dos indivíduos e as oportunidades de participação e emancipação social, concretizando, assim, a ideia de desenvolvimento social e humano. O desenvolvimento, portanto, deve ser entendido de forma qualitativa e não meramente quantitativa. A renda é um elemento importante na equação, mas não o único.

É por isso que o Programa Bolsa Família, enquanto benefício assistencial específico, importante e necessário, deveria ser combinado com outras políticas públicas sociais e com a prestação de serviços públicos de qualidade.

Nesse contexto, apesar de não ser suficiente para erradicar a pobreza no país, o Programa Bolsa Família representou um avanço importante em relação às políticas públicas assistenciais no Brasil. O Programa contribuiu significativamente, inclusive, para a diminuição das privações e das limitações dos beneficiários, inclusive com bons resultados quanto à valorização da autonomia feminina.

O fim do Programa deveria acontecer diante da diminuição significativa dos índices de desigualdade e de pobreza no país, o que definitivamente não é o caso.

Ao contrário disso, vemos o aumento da falta de condições básicas para a manutenção de uma vida minimamente digna; o difícil acesso à renda derivada de um trabalho em condições formais; o difícil acesso à escola; a falta de moradia; o agravamento da fome; a invisibilidade de famílias brasileiras que vivem verdadeiramente segregadas e dependem de serviços públicos precários; a ausência de voz desses indivíduos esquecidos pelo Estado; a desigualdade de gênero, entre outras graves mazelas sociais que são agravadas pelo discurso de parte da classe dominante, que atribui ao pobre a responsabilização pela sua miséria. Esse é um dos motivos pelos quais o Programa Bolsa Família não era aceito (ou era aceito com certa hostilidade) perante alguns integrantes desta classe, gerando comentários como: “o pobre recebe o benefício e deixa de trabalhar” ou “o pobre recebe o benefício e vai comprar cachaça”, como se o pobre fosse preguiçoso e culpado pela sua situação; “a mulher engravida só pra receber mais benefício, possuindo mais filho do que consegue manter”, como se o valor por filho fosse, realmente, um estímulo à gravidez para esses fins, configurando absoluta insensibilidade e incapacidade de olhar para o outro.

A hostilidade somente agrava a questão da desigualdade social e contribui para a consolidação de uma cultura de resignação e naturalização da pobreza. Tanto que o fim do Bolsa Família foi anunciado sem grandes oposições.

Até quando continuaremos entretidos com a cortina de fumaça criada em torno dos comentários mais absurdos do Presidente e seu clã, enquanto assistimos silenciosamente o desmantelamento das políticas públicas sociais voltadas aos grupos mais vulneráveis e dos direitos conquistados a tanto custo desde 1988?

Tainah Simões Sales

Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Advogada.