Bemdito

Fome estomacal de teatro agora

Por que o teatro dos espaços físicos tende a ser ainda mais visceral depois do encontro recente com as mídias digitais
POR Magela Lima
Espetáculo Clã_Destin@, da Companhia Clowns de Shakespeare

Por que o teatro dos espaços físicos tende a ser ainda mais visceral depois do encontro recente com as mídias digitais

Magela Lima 
lima.magela@gmail.com

A pandemia da Covid-19 desempoeirou os dicionários de teatro. Foi só começar as apresentações (transmissões?) pela internet, para que uma acirrada disputa de sentidos viesse à tona. Em pleno século XXI, não foram poucos os que decidiram apontar como “problema” o que o velho McLuhan, ainda na década de 60 do século passado, tinha como potência e, lindamente, chamava de energia híbrida. [Afinal, nada como assistir ao encontro de duas mídias!] O fato é que, apesar dos senões e das críticas nada moderadas, de um preciosismo de fazer inveja à cartilha do classicismo, o teatro tem conseguido se expressar num cenário de restrições extremas.

Enquanto se discutia o que não é e o que deveria ser, é preciso reconhecer que os artistas da cena abriram veredas quase impossíveis, revisitando linguagens e formatos com a pressão de negociar habilidades com novas tecnologias, ao mesmo tempo em que alargavam seus públicos. Atropelados pela realidade de 2020, o Grupo Magiluth, de Recife (PE), por exemplo, desenvolveu dois trabalhos já enfrentando o medo cotidiano do tal do novo coronavírus: Tudo que coube numa VHS estreou em 7 de maio (nota: a Organização Mundial da Saúde havia declarado a Covid-19 como pandemia em 11 de março) e Todas as histórias possíveis em 20 de agosto. Juntas e apesar de tudo, as produções somam mais de 4000 apresentações, tendo alcançado 21 estados brasileiros e mais de 20 países.   

Na falta de uma palavra que abarcasse esse momento na trajetória do coletivo, o Magiluth preferiu batizar suas criações mais recentes como “experimentos sensoriais em confinamento”. Na prática, são duas montagens em que o público é convidado a interagir de uma nova maneira. Nova, aqui, não no sentido de inaugural, de original, mas, sim, de inédita, pelo menos, para a poética daquele conjunto de atores. Em Dinamarca, espetáculo de 2017, o Magiluth trazia os espectadores para a cena, oferecendo uma taça de espumante logo no início do espetáculo. Já em Tudo que coube numa VHS, o envolvimento se dá a partir de trocas de mensagens via WhatsApp. A diferença é que, se, em Dinamarca, ficar de fora do brinde não implica, objetivamente, nenhum prejuízo, em Tudo que coube numa VHS, com cada intérprete, cada performer, se dedicando a um único espectador, rejeitar uma chamada de áudio seria uma quebra fatal. 

A mudança mais significativa (e, curiosamente, a menos discutida) desse esforço de existência de uma prática teatral através e com a internet é exatamente a audiência. No jogo teatral das mídias digitais, a plateia é, surpreendentemente, mais presente, mais visível e mais atuante. No meu caso, sempre me senti muito confortável e feliz assistindo teatro. Vendo, de longe. Gosto da sensação de ver, sem, necessariamente, me sentir sendo visto. Nunca me incomodou ficar quieto, calado, no escuro, e deixar o foco de luz para os artistas. Eu sempre me coloquei fora da cena. Aí, vem uma pandemia, que me pede consciência de distanciamento social, e, de repente, me vejo participante, disponível e totalmente imerso numa cena tão alheia quanto bem-vinda, que acontece, como nunca antes havia experimentado, na intimidade da minha casa. 

Basta confessar que a minha primeira (e única, diga-se) live no Instagram foi resgatando uma fantasia do carnaval passado (o de 2019, infelizmente) em meio a uma operação com os companheiros do grupo Clowns de Shakespeare, de Natal (RN), em Clã_Destin@, que a companhia, mais uma vez na falta do termo perfeito, denominou como “uma viagem cênico-cibernética”. Também em Parece loucura mas há método, que a Armazém Companhia de Teatro, do Rio de Janeiro (RJ), apresenta pelo aplicativo Zoom, eu me vi tão entregue, que, enquanto procurava entender como havia conseguido perder todas (todas, mesmo) as etapas do jogo que a montagem propõe, não me dei conta de que estava sem camisa na hora dos aplausos, quando o grupo, enfim, libera as câmeras dos espectadores. 

Quando isso tudo passar (vai passar, sim), nem eu nem ninguém vai voltar aos teatros (às casas de espetáculo) como as deixamos há um ano, nem eu nem ninguém vai acompanhar apresentações presencialmente no mesmo tempo e mesmo espaço como antes. Muito menos, os artistas. Heroicamente, eles cruzaram (digo, estão cruzando) essa pandemia, fazendo explodir poesia de um cenário absolutamente improvisado. Pouquíssimos realizadores de teatro tinham a internet e as mídias digitais como parceiros para além de ocasionais e aleatórias estratégias de divulgação de suas criações. Essa realidade hoje é outra. No futuro (quiçá, ele, o futuro, já tenha chegado, só não igualmente distribuído, como acreditava William Gibson), é possível, sim, que as experiências virtuais não só se tornem perenes, mas sejam absorvidas enquanto linguagem.

Tão logo essa centralidade forçada da internet como único palco possível for relativizada, tudo o que foi produzido nesse contexto de isolamento social vai passar por um filtro e muitas das soluções nascidas entre o improviso e o desespero vão ficar. Vão ser absorvidas enquanto linguagem, insisto. De forma programada, desejada e consciente, não há razão para que se abram mão dos recursos conquistados recentemente. A chave, me alertava, um dia desses, o ator mineiro Paulo André, do Grupo Galpão, de Belo Horizonte (MG), é não aceitar a precariedade como regra. Não, não está proibido ao artista de teatro explorar o universo e as mídias digitais. Definitivamente. Mas que o faça com as condições técnicas e poéticas que julgue necessário para tanto. 

A mim, parece bastante evidente que o chamado “teatro da internet”, acidental, nos termos em que 2020 o obrigou que fosse feito, nem de longe substitui a experiência do tablado, da rua, do terreiro, da lona. Isso se dá, é preciso reforçar, não por um desrespeito à história da linguagem, não por ser pior que os formatos tradicionais e, muito menos, por não ser teatro. Não substitui porque não tem nem deveria ter que substituir.  A questão central, a meu juízo, não é de disputa, de rivalidade de formatos, mas, sim, de colaboração, de estratégia de sobrevivência em meio a tempos tão difíceis. O fato é que pandemia e tudo o mais que desencadeou não parou a roda de invenção do teatro. É isso que importa!

De todo modo, é certo que se anuncia uma tendência a que tudo o que foi (ainda está sendo) represado ao longo do último ano (e sabe-se lá até quando) exploda no tempo certo. No tempo da saúde. No tempo da vida. Em sua jornada de confinamento, o Galpão, de Paulo André e outros tantos queridos (dentre os quais, Teuda Bara, que fez 80 anos, trancadinha em casa, brigando e criando com o computador) desafiou os formatos e mídias digitais com extremo vigor e criatividade. Diferentes projetos passaram pelas redes sociais e pelo canal da companhia no YouTube. Até um longa-metragem (Éramos em bando, documentário com direção de Marcelo Castro, Pablo Lobato e Vinícius de Souza, lançado em setembro de 2020), o Galpão fez, sem que pudesse estar em cena, como se habitou a estar ao longo dos últimos (quase) 40 anos. Enquanto a pandemia não arrefece, o coletivo segue recluso e produzindo. 

À revelia do que registram os verbetes de dicionário, os episódios recentes que atravessamos vieram sublinhar que não se pode amarrar a atividade teatral em meia dúzia de ideias fechadas. Teatro é encontro, sim, é estar em bando, sim, o que, a rigor, não decorre apenas da possibilidade de contato físico, mas teatro também é cheiro, é gosto, é toque. Embora me empolgue e me emocione com o teatro virtual, tenho andado cada vez com mais fome de teatro, com uma vontade louca de me lambuzar todo de teatro. Prometi, para mim mesmo, que, nunca mais, deixo uma sala (física), depois de uma apresentação dos meninos do Magiluth, sem dar um abraço apertado em cada um deles, mesmo sabendo que eles vão estar encharcados de suor ou tinta e lambuzados de farinha. Só agora, com essa agonia toda, é que consigo chegar mais perto de entender o sempre urgente e necessário José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina, de São Paulo, quando ele defende que o melhor do teatro é fazer, e, não, ver.

Magela Lima é pesquisador e crítico de teatro. Está no Instagram.

Magela Lima

Crítico e pesquisador de teatro, tem mestrado e doutorado em Artes Cênicas.