Bemdito

Nós por eles

Pavilhão da Magnólia retoma apresentações em caráter presencial com montagem que afirma a dimensão coletiva dos dramas pessoais
POR Magela Lima
(Foto: Allan Diniz)

Acredite: você não é a única “criança viada” que organizava suas festinhas de aniversário. Você, que confia que vai dar tudo certo, mesmo sem se vestir de anúncio de plano de saúde, também não está sozinho, não. E, você, menino preto, que viu seu namorinho de adolescente com uma garota branca ser censurado, pode ficar certo de que essa história, tristeza nossa, já se repetiu a exaustão. Você, também, menina, que se fez mulher e desafiou o mundo para inventar a vida de acordo com seu próprio querer, felizmente, não é caso único. Vocês todos, ainda bem, são um sem-fim de vocês.

Há uma festa sem começo que não termina com o fim, novo espetáculo do Grupo Pavilhão da Magnólia, com direção e dramaturgia de Francis Wilker em colaboração com Thereza Rocha, é um exercício constante e poderoso de empatia. Os quatro atores do elenco, Jota Júnior Santos, Eliel Carvalho, Nelson Albuquerque e Silvianne Lima, quanto mais escancaram suas memórias, mais falam da plateia, da cidade e do país que, propriamente, deles mesmos. A todo instante, história pessoal e coletiva vão se cruzando, espelhando com muita intensidade um eu num nós, criando momentos de uma natureza comunitária, coletiva, muito profundos. 

A peça, que tem como uma de suas provocações o Livro dos começos, de Noemi Jaffe, organiza lembranças e vivências, aparentemente desconexas, enquanto alinha tempos que foram violentamente sufocados. Absolutamente presente, Há uma festa sem começo que não termina com o fim cheira a álcool 70% e exala indignação com o desgoverno que ainda se sustenta em Brasília, mas não fala só de hoje, não. A montagem faz emergir um passado que precisa ser resgatado e legitimado, sob a pena de o tal do futuro simplesmente se inviabilizar. É um trabalho com uma camada de discurso político muito expressiva, mas de um engajamento, uma militância, que se guia, sobretudo, pela delicadeza.

Sete grandes narrativas sustentam a dramaturgia do espetáculo. Além dos causos, em tese, particulares dos atores, entram em cena a própria trajetória do grupo Pavilhão da Magnólia, já com 16 anos de atuação em Fortaleza, a Casa Absurda (Rua Isac Meyer, 108, Aldeota), espaço compartilhado pelo coletivo com a Companhia Prisma, e a própria obra de Noemi Jaffe, fisicamente explorada pelo elenco e pelos espectadores. Tudo isso fala, tudo se liga, tudo isso se mistura para trazer à tona discussões ainda urgentes, como a defesa das demarcações de terras indígenas e as violências que perseguem o cotidiano das pessoas trans. Há uma festa sem começo que não termina com o fim até parece singular, mas é, por excelência, plural.

Composta de quadros dispostos numa sequência facilmente mutável, a peça tem como um dos principais destaques o solo de Nelson Albuquerque. Ali, a poética do teatro documental ganha uma execução mais categórica, com a ficção da cena se sustentando no registro formal daquilo que se tem como realidade. Nelson se coloca diante do público, literalmente, com o seu CPF, com o seu RG, com a sua Reservista e com as suas Certidões de Nascimento. Tal o personagem que viveu no infantil Ogroleto, com direção de Miguel Vellinho, o ator não tem pai no documento e compartilha esse segredo de família, uma família absurdamente brasileira. Nesse fragmento, a composição de Francis Wilker e Thereza Rocha adquire um patamar de excelência.

Contingentes de produção, considerando as dificuldades desse momento de retomada dos artistas de teatro aos projetos presenciais, fazem dessa primeira temporada de Há uma festa sem começo que não termina com o fim, entretanto, um longo ensaio. A peça tende a ser (e vai ser) muito mais potente do que se apresenta agora. Há, ainda, uma insistente dificuldade do elenco em alinhar o acento do vivido ou lembrado ao acento desse vivido ou lembrado organizado como texto teatral. Não é tão simples quanto parece entrar em cena de cara lavada nem muito menos representar a si mesmo. Daí, a montagem carregar uma reserva de desdobramentos muito rica. Falta pouco para os atores serem eles mesmos o tempo todo, apesar da cena. Nos momentos em que isso acontece, aliás, o espetáculo explode. Há uma festa sem começo que não termina com o fim, como o próprio título sugere, tem tempo suficiente para isso. 

E, por falar tempo: para quem estava com saudade de experimentar o teatro no toque, Há uma festa sem começo que não termina com o fim é um alívio. O público senta, levanta, anda, dança, come bolo, bebe caipirinha, manda mensagem de voz no celular, canta, ri e, não poucas vezes, leva o dedo ao canto dos olhos para apaziguar uma lágrima.

Magela Lima

Crítico e pesquisador de teatro, tem mestrado e doutorado em Artes Cênicas.