Bemdito

O julgamento de Cambises

Como Saturno que devora sua própria cria, um conto sobre as obscenas experiências de um casal em tempos de isolamento
POR Luan Brito
Saturno devorando um filho (Francisco de Goya)

O que vejo? Uma mulher fala. Sua necessidade de ser compreendida está no auge da frieza. Observo o seu rosto em detalhes, como a boca se move, como a língua avança no palato quando pronuncia sons sibilantes, as sobrancelhas que se arqueiam fugindo do esconderijo da armação dos óculos e as maçãs do rosto que, se erguendo em seguida, o elevam para escondê-las novamente. A mulher tem feições um pouco masculinas, os olhos são pequenos e afastados, os cabelos são castanhos, veste uma camisa social cáqui e os shorts de um pijama velho, impossível de ver no enquadramento. Como se tivesse olhos na nuca, posso ver atrás de si a cafeteira elétrica e uma garrafa de vidro âmbar em que é cultivada uma jiboia hidropônica, esse é o meu improvisado cenário que dura das três às cinco da tarde. Também posso ver a xícara de café batizada com o uísque, e a incidência da luz calculada após um giro completo me olhando pela câmera do celular. Eu sou a mulher, o seu rosto é o meu rosto. Ela é feia e bonita e expressa um gélido erotismo.

Eu falo sobre Saturno devorando seu filho, uma pintura do Goya. Um titã senil come o filho destinado a lhe usurpar o trono, acuado contra a parede, ele está agachado em uma estranha posição, como se flagrado pelo próprio pintor ao adentrar em seu covil. Não há prazer no seu rosto, os olhos são enormes, a boca avança contra as juntas de um braço do corpo já mutilado do jovem herdeiro, e suas mãos sujas de sangue estão enterradas ao longo da espinha. Cerca de quatro anos antes, Goya havia pintado Três de maio de 1808 em Madri, uma representação da resistência à brutal invasão de Napoleão à Espanha. Levou cinco anos até que a coroa espanhola recuperasse a sua independência, e o rei Fernando VII, ao assumir o trono, esmagou a nova constituição e mergulhou novamente o país na autocracia. Assombrado pela guerra, Goya se retira, e passa a pintar cenas de pesadelos nas paredes de sua casa. Em uma delas, um jovem é devorado pelo pai que deveria usurpar. Goya nunca nomeou as pinturas desta série e as manteve em ambiente privado até a morte. Não há prova documental das intenções artísticas por trás da obra, mas é possível imaginar que se trata do horror da interrupção do progresso.

Na sala de aula, nesses momentos, vivia alguma satisfação profissional, e até a ilusão de ser uma mulher importante. É verdade, no Google Meet, você pode visualizar somente a câmera dos alunos. Mas eu percebi que é equivalente desconfortável se ver, e não se ver, tendo essa opção. 

É o espelho, penso que tenho quarenta e seis anos e que todas as mulheres nesta idade já não estão tão interessadas por espelhos, bem, na verdade nem todas as mulheres, de toda forma, eu não estou, mas ter a partir da própria imagem a medida de tudo é muito mais aliciante do que as demais distrações cotidianas, os vizinhos barulhentos e outros clichês do trabalho virtual. 

Constrangida, percebo que não há nada mais atroz para se fazer com jovens estudantes do que lhes dirigir indiferença, e que uma sala de aula, mesmo que em termos práticos não seja um MacBook Air, tampouco é um palco de teatro onde uma performer é observada e se observa com pulsão masturbatória. Por outro lado, penso que não é uma de minhas obrigações tornar o funcionamento do mundo mais tolerável, e que careço de razões para fazer e não fazê-lo, mas a arte, pelo menos nesta tarde, me impele a entrar para o contingente de pessoas que o fazem, de modo que, sem pensar bastante, apresentei aos alunos uma sugestão para as próximas aulas.

O desprazer pagão

Pego a xícara de café e caminho até a varanda. O sol se põe entre os prédios e eu observo os carros. Eu fracasso na tentativa de desenvolver alguma emoção diante da vista, e sei que parte disso se deve ao fato de não beber um gole seguido por franzir os lábios quando o lusco-fusco atingiu, ao longe, a fachada ocre de um prédio espelhado. Não seria muito útil, entretanto não seria nada mal, e eu gostaria de ter vivido essa pequena experiência, sei que gostaria bastante. 

Ouço na entrada o barulho do equipamento bater fofo no chão, dentro da bolsa. Por cima do ombro vejo que Ele acaba de chegar. Ele abre o zíper da jaqueta de nylon e revela a camiseta com o cachorro de três patas sob luz fluorescente verde, a capa de um disco do Alice in chains, ou outra banda de rock que ouvimos sem parar no final dos anos noventa. Durante meus quatro anos no curso de Belas Artes, era meu único amigo de verdade, e eu passava quase todas as noites no quarto dele bebendo cachaça e fumando maconha enquanto assistimos VHS’s nas quais garotas peludas eram fodidas analmente por homens que não conseguiam manter uma ereção plena.

Ele não tinha grana para cursar Cinema, mas estava sempre por perto, no campus, e agia como um aluno do último período. Tinha cabelo comprido, loiro e liso, e um estilo grunge bem marcado. Comentava meio entediado, meio excitado, que o visual ruidoso dos pornôs era como a música que curtíamos, e que conseguiria, com o equipamento necessário, reproduzir ele mesmo este tipo de estética num cinema, digamos, mais sério. Era como se fosse somente material de pesquisa. Eu nunca soube se Ele gostaria de me comer ou se masturbar durante essas sessões, embora percebesse o seu pau ficar duro por baixo do calção. Sei que, na maioria das vezes, eu gostaria, mas não esperava que fosse acontecer até o dia em que tirou debaixo da cama uma velha câmera JVC com microfone acoplado, a segurou na altura do peito apontando para mim e disse Vamos?

Sinto que se aproxima de mim. Ele me abraça e roça de leve o nariz em minha orelha, e deve ter se surpreendido com alguma coisa em meu olhar, porque depois de uns instantes de hesitação, pergunta, coçando a parte detrás da cabeça Você já comeu?, ao que respondo que não, erguendo a xícara de café à altura do queixo. 

— Esse café é pagão? — pergunta em seguida.

— Pagão? 

— Isso, quero saber se tá batizado — diz, por fim, uma piada que me faz sorrir um pouco pela insistência, e completa: — Eu adoraria, adoraria mesmo um gole, mas só se tiver batizado.

Há uma tensão em seu rosto, quase um sofrimento, como se tivesse tido um dia difícil, mas sei que entre a imagem do cansaço de desprazer e do de satisfação não existe muita diferença.

Ele abre a geladeira, tira alguns alimentos e conta que gastou o dia inteiro filmando takes de uma subcelebridade masculina exibindo um relógio de pulso, numa entediante e genérica luz Rembrandt. Eu digo que a luz genérica e entediante é exatamente a que preciso, e que gostaria que me ajudasse filmando algumas das minhas aulas. O ensino remoto ao vivo está acabando comigo e, é claro, eu sei que os anos de juventude são os únicos realmente felizes da vida e que o entusiasmo não resiste à chegada da maturidade, mas, por deus, todos os anos posteriores não precisam ser uma tragédia. 

Por um momento, vejo uma pequena fagulha em seus olhos, como se se desse conta de que há ainda muito o que fazer antes de descansar. Ele se aproxima do jogo de facas em cima do balcão e pega uma de um tamanho que julguei exagerado para o que iria fazer. Cortando, além da casca, grandes lascas da polpa da maçã que segura com a mão esquerda, Ele me pergunta, apenas por curiosidade, o tema da aula que eu gostaria de filmar primeiro. Eu observo calmamente os seus movimentos e digo em voz baixa: O julgamento de Cambises.

Entre tintas e câmeras

Por uns momentos no estúdio, parecia que não era observada apenas por Ele, mas por todos os estranhos que viriam a assistir ao material gravado. Desconhecendo quase completamente as suas identidades e sabendo que, para muitos deles, eu seria apenas a mulher que fala sobre uma pintura, me tornei, naquele momento, apenas essa mulher, não tinha outras aspirações que não envolvessem decifrar o olhar perdido do juiz corrupto Sisamnés enquanto é esfolado vivo na presença do rei Cambises II. 

O abdome está aspirado numa rija contração, como se Sisamnés já estivesse morto mas ainda prendesse o ar para um último suspiro. Vejo em seus olhos a constatação de que a vida é mesmo amarga e decepcionante, que descobrimos isso cedo demais e que tudo que acontece depois é apenas  uma confirmação, mas além disso, em momentos como aquele, a dor traz numa inesperada lucidez o pensamento de que seria melhor nunca ter nascido.

Ele ajusta um dos iluminadores à esquerda e toca a maçã do rosto — Um belo e difuso triângulo de luz, diz —  e caminha até o computador, que exibe em tempo real as imagens das duas câmeras. Ele pede que eu fale, e me deixa à vontade pra me repetir quantas vezes for preciso. 

Eu falo. Às minhas costas, tenho como cenário uma reprodução do Julgamento de Cambises presa ao teto por linhas de nylon e, embora eu saiba tudo sobre a pintura flamenga do século XV, estou agora em seu mundo. 

É curioso como um estúdio sempre cheira a tinta fresca do impecável fundo infinito, retocado quase todos os dias. Aqui, a luz, o odor, a atmosfera emana grande magnetismo. É simples agir sob esse tipo de letargia. A voz dele surge em comandos breves e penetrantes, e eu os obedeço como se viessem de dentro de minha cabeça. 

Ele se dirige à câmera secundária, acoplada a um trilho que corre numa mesa perto de mim. Apontando para a câmera, pede pra que eu fale em sua direção. Tem olhos verdes e uma expressão sulcada, como se tivesse sido esculpida com golpes de formão, há ainda a marca de rosácea na parte superior das bochechas e no nariz, quando éramos jovens eu achava que ela lhe dava um ar de criança travessa, sempre disposta a brincar, e para falar a verdade, ainda penso desta maneira. 

Ele conduz a câmera devagar sobre o trilho, em um movimento de travelling, que se aproxima do zoom in, mas aparenta ser mais natural, e gira o display da câmera para que eu possa vê-lo, e eu vejo a minha imagem distorcida pela lente grande angular, como se todo o espaço ao redor convergisse para o centro de uma esfera, e eu estou no centro desta esfera. Você está linda, diz Ele, com a mesma voz de comando, o que interpreto como Não se mova, não faça nada que eu não mandar, e eu o obedeço e sigo achando a brincadeira fria e excitante ao mesmo tempo, até que depois de instantes ela perde a graça, sobretudo quando penso ser patético testemunhá-lo tentando exercer uma espécie de poder sensual sobre uma mulher com quem dorme todos os dias, mas, por outro lado, penso que seria muito constrangedor contrariá-lo e o obedeço sem a menor vontade, até que Ele diz Desabotoa a blusa, Só os dois primeiros botões, e em seguida, diz Quero ver um pouco dos seus ombros, Se estiver de sutiã, melhor ainda.

Instintivamente, passo a enrolar a alça do sutiã no dedo indicador como enrolaria o fio do telefone durante uma conversa quente, e vejo no display que minha expressão mudou e estou excitada antes mesmo de entender. Ele caminha devagar, como se desejasse prolongar essa excitação. Ele diz Me olha, Me olha como se você tivesse deixado de me amar segundos atrás, e ainda está muito confusa pra demonstrar o contrário, e sei que não fala diretamente comigo, e sim com a mulher na frente da câmera, mas sou eu que ouço, e penso que em todo esse tempo nunca havia cogitado se o amei um dia, e que, ao contrário da instrução, talvez, neste momento, sentisse o que mais próximo já senti de amor.

Voltamos do estúdio para casa, protegidos da rua pela penumbra no carro. O que aprendi na vida conjugal é que nunca contamos nenhuma experiência obscena que não suportaríamos ouvir a outra pessoa dizer Eu também já fiz, e assim se estabelece um tímido conservadorismo em que o repertório sexual do outro é apenas um folclore que tentamos adivinhar, muitas vezes com algum aborrecimento e estômago embrulhado. Portanto, me mantenho de boca fechada sobre o que acabamos de fazer, enquanto Ele leva o cigarro à boca e tem no rosto a expressão pateta que os homens têm quando acabam de gozar.

É uma tarde normal no centro, e cruzamos as ruas com os seus camelôs e lojas de todos os tipos, até que paramos em um sinal vermelho, em frente a um Sex shop. As portas são cobertas por cortinas de plástico, de banheiro, para a privacidade dos clientes, e na calçada, duas manequins carecas e de pele craquelada vestem fantasias sexuais. Uma delas é uma enfermeira puta, de meia calça e cinta-liga vermelha, a outra é uma policial, e veste uma minúscula lingerie preta e transparente, de tecido vagabundo. É possível ver em ambas a protuberância dos mamilos de polipropileno, e na enfermeira, alguém desenhou uma camada generosa de pelos pubianos com pincel atômico azul. 

Ele bate as cinzas do cigarro para fora da janela e olha a cena com indiferença. A visão também parece não incomodar os transeuntes.

A morte onírica

A astenia experimentada no sonhar não se refere à morte, mas à imitação da experiência da vida elevada à potência da completa autonomia do destino. Assim, o sonho evoca a morte ao mesmo tempo em que é uma paródia hiperrealista do viver. O problema é que apenas acordados nos damos conta disso.

No sonho, eu estava em um descampado de vegetação rasteira. Parecia se tratar de uma região fabril. Havia amplos galpões, distantes uns dos outros, construções frágeis e baixas de chapas de alumínio onduladas, e caminhões estacionados em direções diversas anunciavam que a indústria, embora ainda não soubesse de quê, estava em pleno funcionamento.

O céu era de um branco quase irreal, como se todo tomado por nuvens, mas ainda resplandescente. Um homem saltou de um dos veículos e caminhou na direção de uma construção diferente das demais. Ela parecia não fazer parte da paisagem, que, de alguma forma, tinha gosto, um sabor ácido. Era uma pequena igreja cuja arquitetura também se assemelhava a de uma lanchonete fast-food. Tinha paredes brancas com detalhes vermelhos e, no topo da elevação em torre, uma cruz de PVC amarelo com retroiluminação. 

O homem pareceu intuir que estava sendo seguido e alterou sua rota sem esboçar qualquer reação de surpresa, como se não houvesse nada em jogo. Caminhava então para um dos galpões. Naquele ambiente, tudo ao redor dava a estranha impressão de desuso que apenas o desgaste do trabalho excessivo pode conferir. O homem atravessou a persiana vertical de plástico translúcido. Uma vez dentro do galpão, me esperava como se entre minha chegada e a dele houvesse passado bastante tempo. Percebi que a essa altura uma enormidade de coisas já haviam sido ditas, e que o homem era Ele.

Foi aí que começou o ruído. Ele estava sentado diante de uma mesa de tampo metálico, de tipo industrial. No centro dela, havia um funil onde descartava umas bolinhas amarelas que pareciam escoicear duas ou três vezes antes de descer pelo ralo. Ele ergueu uma delas próximo ao rosto e vi que se tratava mesmo de um ser vivo, um pinto com talvez dois ou três dias de vida, então, fechou um dos olhos, mirou o traseiro do animal e, sem dizer uma palavra, separou-o em um container de plástico, ao seu lado esquerdo. O pinto se juntou aos outros, que já preenchiam metade do recipiente, e se movia sobre eles sem qualquer equilíbrio, fazendo desmoronar pequenos amontoados que aproveitavam a chance para respirar e emitir barulhos. Olhei ao redor e percebi, finalmente, que estava em um aviário de proporções industriais. Não havia gaiolas, as galinhas em idade adulta estavam espremidas umas contra as outras em baias apertadas. Eram quase completamente depenadas, com a pele em carne viva infestada por piolhos, e os olhos e as cristas estavam tomados por um pus visguento. 

Ele inspeciona e descarta mais um pinto, e mais um, com movimentos quase inalterados, maquinais, como se estivesse impelido a continuar apenas porque começou, até que, me olhando nos olhos, esmagou um deles com um aperto que produziu um som mole como o espremer de uma esponja. Ele atirou a massa disforme no centro do funil e na prosódia típica dos sonhos disse Você me trouxe para o seu mundo, aqui os machos não servem. 

Acordo ainda sem compreender completamente o que Ele havia dito. O sonho, embora possua um conteúdo manifesto, penetra a latência logo que despertamos. É como subitamente desaprender um idioma que utilizamos numa conversa que aconteceu a instantes atrás.

O lado dele da cama está vazio. Na sala, se surpreende com minha presença, tão cedo. 

— Bom dia — diz, enquanto coloca um sanduíche embalado em papel alumínio na mochila. 

— Vai sair?

— É, vou trabalhar.

— Eu tive o sonho mais estranho essa noite. — digo, e vejo na mesa, em cima de um prato, cascas de cebola, um toco de cenoura e uma lata de atum violada.

— Foi mesmo? Olha, vou rodar uma externa hoje, o lançamento de um carro, ou algo assim, devo demorar a chegar, não me espera. 

— Tudo bem.

— Mas e o sonho? 

— Ah, deixa pra lá, acho que esqueci. Escuta, o material que gravamos, onde posso pegar? 

—  Material? A câmera estava desligada quando a gente —

— A aula — interrompi. — A minha aula.

— Sim, claro — diz, meneando a cabeça —, lógico, no computador, o computador cheio de adesivos, lá no quartinho. Ei, você pode jogar isso fora? Não esperava te ver tão cedo, e os meninos da produtora não conseguem fazer nada sem mim. Eu já tô tão atrasado.

Fecho os olhos por um longo tempo e volto a abri-los. Estou mesmo acordada, e somente agora me dou conta disso. 

Ele vai embora. Desabo no sofá e observo pacientemente a mesa. Como as sobras de uma natureza morta, as cascas abauladas da cebola são conduzidas pelo vento até que, ao caírem no chão, lembram pedaços muito finos de pele humana.

Movimentos de graça e dúvida

Não sei ao certo se é o uísque ou se o que assisto realmente deixa dúvidas se se trata da tentativa de produzir algo grotesco ou excitante. 

No quartinho atulhado de parafernalha eletrônica, o computador com adesivos estava conectado a quatro discos rígidos cheios de arquivos de vídeo. Passei por quase todos, que variavam de comerciais de cerveja a programas políticos e todo o tipo de quinquilharia audiovisual, até que fiquei curiosa a respeito da legenda de um deles.

As imagens mostram um apartamento de novo rico com decoração kitsch. O ambiente é revestido por um papel de parede com motivos art nouveau. Ao centro, há um sofá capitonê de dois lugares em couro preto e uma mesa de vidro coberta por abacaxis dourados, que está afastada para a direita, em cima de um tapete persa, onde, presumivelmente, acontecerá a ação. É um material bruto, com diversos cortes. Nas primeiras tomadas, uma tabela para o balanço de cores e branco está posicionada em cima do sofá, e depois de segundos, em um novo take com melhores condições de iluminação, a tabela dá lugar a um homem negro nu, que entra e sai de cena rapidamente. Ele caminha à vontade, por trás do sofá, massageando o pênis enquanto bebe um copo d’água.

A cena seguinte é longa e começa após o bater de uma palma na frente da câmera. Uma mulher está sentada no encosto do sofá, veste uma lingerie vermelha, do tipo caro, e brinca com um dildo de mesma cor. Seu rosto tem queixo marcado, lábios carnudos, maçãs do rosto proeminentes e olhos puxados. A sua aparência é ambígua, ao mesmo tempo em que sinto que já posso tê-la visto dezenas de vezes em publieditoriais na Internet, ela lembra um ciborgue instagramável de rosto apenas quase humano e não parece com ninguém. Ela alterna momentos de graça e dúvida, beijando o dildo e o acariciando com o rosto, às vezes olhando para a câmera, às vezes desviando o olhar ao redor, como se esperasse por instruções.

Nos bastidores, uma voz familiar tenta se fazer discreta e repete frases como Você está linda, Continue, Não pare, Não pare, Eu vou cortar, Vai pra edição, Continue. São suaves e sensuais os pequenos acessos de incerteza intercalados pelos momentos de performance sexual quase extrema, quando, por exemplo, depois de ouvir com olhar infantilizado a instrução de que deveria deslizar um pouco mais para a beira do sofá, a mulher cospe no pênis de borracha e o masturba com força.

Logo, cinco homens entram em cena. Todos têm pênis enormes e corpos atléticos sem tatuagens. O negro aperta o rosto da mulher, que somente agora se revela uma incógnita. Sem falhas ou outras marcas de expressão, pode ter 16 ou 35 anos. Ela quase não reage aos tapas no rosto, beliscões nos mamilos e às penetrações. A voz por trás da câmera diz Ao mesmo tempo, e como se soubessem exatamente o que é esperado, os cinco homens penetram simultaneamente o ânus, a vagina e a boca, depois carregam a mulher para próximo da câmera, para exibir bem de perto os efeitos das penetrações. A ação se desenrola quase sem nenhum aspecto de prazer, é apenas uma imitação do sexo que se trai a cada segundo.

Penso que, como numa peça de arte abstrata, não é exatamente a verossimilhança que promove a excitação, mas a transformação do factual em símbolo, neste caso, do sexo em algo essencialmente degradante, e eu mesma estou curiosa e enojada, como apenas o pornô hardcore consegue deixar. O negro se posiciona atrás do sofá e segura as mãos da mulher atrás da cabeça. Os outros quatro estão de frente para ela, num semicírculo, e, para minha surpresa, um deles mija em seu rosto com violência. Não, Não, Não, grita a voz e interrompe o plano-sequência com uma palma. Ele entra em cena. Não é assim, porra, Tudo de uma vez, não, Olha como ficou a cara dela, É assim que você tem que fazer. Ele levanta a camiseta com a estampa do cachorro de três patas e abre o zíper da calça. O seu pênis está quase totalmente flácido. Ato contínuo, apertando a glande, lança pequenos jatos na boca da mulher, que dessa vez consegue deixar a urina escorrer pelo corpo, gargarejar e engolir. Ele começa a se masturbar e logo ejacula no rosto dela; em seguida, fecha o zíper, limpa as mãos na camiseta, penteia os cabelos para trás. Viu, porra? Maquiagem! Alguém traz uma toalha pra vagabunda.

Depois da demonstração, interrompo o vídeo. Me levanto, percorro todo o cômodo, alcanço na cristaleira uma garrafa de uísque. É como uma chave líquida forjada por um peixe. Capaz de abrir qualquer fechadura, o álcool vem como uma âncora de baixa densidade, lentamente, mas sem parar, até o fundo, e sinto cingir dos lábios o odor acidulado que embaça a visão, até que, comprimindo os olhos, desejo poder despertar mais uma vez, de um sonho dentro de um sonho. 

Se soubesse antes como terminaria, nunca teria deixado começar. Mas é claro, eu sabia o que poderia encontrar, não exatamente o quê, na verdade, mas sabia que poderia encontrar algo. O que está por trás de qualquer investigação não é a busca pela verdade, não queremos investigar o mundo como é, mas descobrir, por qualquer espécie de milagre, que ele é como imaginamos. Penso no que acabo de ver e minha reflexão vai se aprofundando gradualmente em um complexo raciocínio até atingir um plano sofisticado: vou beber veneno.

Tetris urbano

No horizonte profundo, os prédios brincam de tetris. É uma bela vista, de um belo apartamento, e observo tudo meio bêbada em meu exílio contemplativo, os acessórios de um arrogante estilo de vida pequeno burguês que me trouxe algumas benesses, é verdade, mas a reboque trouxe a culpa cristã e a valorização excessiva do sexo. Em outras palavras, me sinto uma idiota, mas saber que as minhas dores são idiotas não as tornam mais fracas, senão mais cínicas. 

Neste ínterim, pude revisar o meu plano e desenvolvê-lo ao ponto de dar veneno para Ele também, ou empurrá-lo pela janela, ou envenená-lo e empurrá-lo pela janela, mas o assassinato seguido do suicídio tem um senso de justiça tão infantil quanto masculina, e eu não poderia fazer isso comigo mesma, de modo que decidi fazer o que de pior poderia impor a Ele. 

Decidi que iríamos conversar. 

Percebo que já estamos conversando há alguns minutos e que eu tinha ido muito mais longe do que conversar, eu chorava. Ele dera dois socos na parede e agora mantinha a mão direita dentro da pia, sob água corrente, meio de costas para mim, até que mexe os lábios e diz Frígida, e só identifico a palavra em sua boca porque a conheço bem de perto.

Frígida. Saboreei a palavra, desta vez em minha boca. E foi depois de me fartar com ela que decidi cuspi-la de uma vez por todas.

— O equilibrista só se torna legítimo depois de dispensar a rede de segurança, mesmo — balbuciei em resposta.

— O quê?

— Um filho da puta, eu disse que você é um filho da puta. Aquela garota… meu deus, você é um nojento!

— Não finge que se importa com ela. Ela tá fazendo muito dinheiro vendendo putaria na Internet.

— Dinheiro? Você acha que é de dinheiro que a gente tá falando?

— É claro que sim, mas você é uma menina tão rica, não é? Tão rica que nem percebe que status e dinheiro são a mesma coisa.

Ele tira a mão debaixo da água, ainda deixando a torneira ligada, e a sacode jogando pingos no chão. É evidente que entendo sobre o que Ele fala, o desejo pelo poder, a volúpia da submissão, então nada posso fazer além de chamá-lo para o tapa, e é claro que é isso que Ele quer, me surrar.

— Do que você tá falando, seu cretino?

— Você sempre disse que eu nunca seria um grande artista porque não tive educação adequada, mas porra, adora me acompanhar nos festivais e é só disso que você fala com as galinhas das suas amigas e a sua família esnobe, é isso que você faz, você lê sobre eles, esses filhos da puta, você ergue altares para os seus queridos artistas, mas você dorme do lado de um e sente nojo do pau dele. Você me odeia!

— Então você acha que é um artista? Há há há… me faz um favor. Você produz pornografia!

O olhar dele, a ofensa pesando gorda em cima das pálpebras como um salto de trampolim.

— Você me odeia tanto que nem se preocupou em desmentir o que eu disse.

— Eu não te odeio.

— Me odeia, sim, você sabotou o meu talento pra continuar parecendo superior.

— Pelo amor de deus, eu sabia que você era um mentiroso, mas dramático? Essa conversa não serviu pra nada além de me confirmar velhas suspeitas. Muito piores do que o que vi hoje cedo! E sabotar o seu talento? Você era um merda antes de mim.

— É isso. É exatamente isso, o que você mais odeia em mim é que eu não te adoro o quanto você acha que merece! Mas você, cretina, me diz quem é que vai amar um professor perverso? Quem?

— Que porra… e que porra isso tem a ver com o pornô? Jesus Cristo!

— Tudo a ver, menina rica! As pessoas estão cansadas de suas vidas sexuais de merda, de sua solidão, eles veem… elas assistem ao que apenas eu posso oferecer. Que se foda o sexo real, elas não querem autenticidade, elas sonham com o grotesco porque sabem que ele existe, inacessível, mas por aí, e eu materializo essa fantasia na cara delas e elas se mordem de prazer e vergonha e no final ainda me agradecem porque, porra, é um conforto.

— Conforto? Eu vi aquele lixo e tive vontade de vomitar, aquela merda de exercício de misoginia é a sua “arte”? Aquele negro ao centro como a porra de um Messias, e você entrou em cena… nem mesmo conseguiu ficar de pau duro até olhar pra ele, não é? Você quer ser ele, não? Mas não exatamente ser, você deseja ele, porra. Artista? Você é uma bicha! Uma bicha machista!

Eu digo tudo isso sem nenhuma gota de ironia na voz, mas vertendo sangue com a minha bílis. Ele está pálido, vitimado pelo cansaço da profilática rejeição da minha agressividade.

— Eu sei o que é que você quer — diz Ele.

— Eu quero o que todo mundo quer.

E eu penso que o que todo mundo quer é o amor e a subsequente punição por não merecer o amor, mas respondo:

— Quero morrer.

— Então morra. Morra de uma vez.

Vocês me veem?

O colchão nu exceto pelo lençol de listras amarelas e os dois travesseiros. Ele dorme, de bruços, banhado no suor dos sonhos de menino ressentido. Dá até para ouvir o som grave de sua respiração, quando há um intervalo entre os carros que passam. Penso que é ao mesmo tempo belo e terrível que tenhamos dormido juntos, porque o terrível está em tudo, e o que é o belo senão a porção do terrível que somos capazes de suportar? 

Eu tomo banho, lavo os cabelos, visto roupas limpas. Olho para as coisas no quarto, minhas coisas. Caminho até a mesa, me sento, ouço o bipe no computador. Depois de desejar bom dia, digo que, apenas para recordar a última aula, o maior horror em Saturno devorando o seu filho é que Goya pinta o herdeiro como um adulto, diferente das representações anteriores do mito, que são bebês. Na pintura, o filho sabe exatamente o que está acontecendo, como no Julgamento de Cambises, e ambos são retratados no momento imediato após o confronto, apáticos sobre os próprios destinos. 

— Professora, a sua câmera — diz uma voz. Então, depois de apertar um botão, o pequeno retângulo preto se transforma na minha imagem.

— Vocês me veem agora?

Luan Brito

Escritor, mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.