Bemdito

Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar

O disco Afrociberdelia completa 25 anos no instante em que o governo faz o Brasil regredir meio século
POR Xico Sá

O disco Afrociberdelia completa 25 anos no instante em que o governo faz o Brasil regredir meio século

Xico Sá
bemditojor@gmail.com

Um governo meia-boca de Fernando Henrique Cardoso, com aprovação na casa dos 30%. O hit da boquinha da garrafa nos programas de auditório. Estamos em 1996 e o que me trás aqui de volta é o vinil Afrociberdelia, de Chico Science & Nação Zumbi, que completa, neste maio (ainda tenebroso), 25 anos encerando nossas oiças. Assim se passou um quarto de século e ainda estou na fila da vacina para combater a peste. 

Que saudade até de um governo meio mais ou menos, como o desse tempo. Era uma gestão linda, em termos comparativos. Agora ficou fácil saber o que é a desgraceira em matéria de comando no Palácio do Planalto. Era um baita presidente, diria, imitando a prosódia paulistana, diante do infeliz-das-costas-ocas que temos agora. Viver é comparar, sempre. 

“Um passo à frente / E você não está mais no mesmo lugar”. A agulha na sexta faixa (Um passeio no mundo livre) do vinil, daí vem Samba do Lado. Deixo Maracatu atômico para depois e escuto uma das músicas mais psicodélicas de todas as eras, O Encontro de Isaac Asimov com Santos Dumont no Céu, obra-prima dos amigos expressionistas H. D. Mabuse e Jorge Du Peixe.

Onde você estava em 1996 e qual era o seu lugar no planeta? 

Morava este cronista do Cariri no edifício Quixote, na rua Frei Caneca, 1510, São Paulo, no mesmo endereço que havia hospedado parte da turma do mangue desde o Da lama ao caos e o Samba esquema noise (1994), do Mundo Livre S/A. Sorte ser testemunha auricular desses discos. 

No que salta a agulha para Interlude Zumbi (Gilmar Bolla 8, Gira, Toca Ogam). O afrofuturismo no alto-falante de Peixinhos, bairro de Olinda dessa turma quase toda. O que esses caras faziam 25 anos atrás era um passo muito além. Nunca mais ficaríamos no mesmo lugar. Mesmo. 

Afrociberdelia, produzido por Eduardo Bidlovski, é a prova do que nos reserva o tempo para logo adiante, depois da inexplicável desgraça do bolsonarismo que nos trouxe de volta uma atmosfera dos porões da ditadura. Vai passar, tá passando, falta pouco, Deus, tomara.

Aumento o som da vitrola, encerro ouvindo a genial Samidarish, com os artistas Dengue e Lúcio Maia, mostrando como o disco Afrociberdelia foi feito para mudar nosso presente um quarto de século depois. Escute.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (Companhia das Letras), entre outros livros. Está no Twitter.