Bemdito

“Homem, és capaz de ser justo?”

Lançada no século XVIII por Olympe de Gouges, a provocação permanece atual e incômoda
POR Paula Brandão

Há mais de dois séculos, Olympe de Gouges propôs essa questão, e até hoje a pergunta nos aflige diante de uma resposta que insiste em permanecer negativa. Naquela ocasião, a feminista fazia essa indagação diante de toda a atuação feminina na Revolução Francesa, e a evidente ostentação de uma vitória masculina, batizada com os Direitos do Homem e do Cidadão. Ao se contrapor a esse movimento, escreveu com tintas fortes um novo estatuto para Mulheres e Cidadãs. Em 1793, Olympe enfrentava de modo contundente toda essa estrutura patriarcal e machista que ainda hoje nos oprime, o que lhe valeu o assassinato guilhotinada.

Essa indagação é persistente em minha mente, a cada dia que tenho que ouvir de uma amiga sobre sua sobrecarga doméstica como se esses afazeres não dissessem respeito a todos os humanos. Quando escuto os desabafos cansados de uma aluna sobre relações opressivas e descrédito depositado por algum professor sobre elas. Ou ainda nas mensagens que esse veículo de comunicação me levou a receber logo que divulgo uma coluna na qual discuto os comportamentos sexistas.

O cenário político, as universidades, as religiões, e tantas instituições ainda não conseguem ser justas com as mulheres. Deputadas permanecem sendo vítimas de assédio em plenário, na frente das câmeras, com um homem as desqualificando ou abraçando-as por trás pegando em seus seios. Nas universidades, mulheres narram comportamentos machistas daqueles professores que pararam no tempo, e, do alto de suas austeras carreiras de machos misóginos e reacionários, tentam impedir suas entradas em determinados recintos ou as diminuem intelectualmente pelo simples fato de serem mulheres. Denúncias de estupros e assédios não param de sair nas mídias  envolvendo pastores, padres e toda sorte de religiosos que se valem da sua atuação de conselheiros.

Olympe de Gouges, nos encontramos em todo canto do planeta, tendo que reafirmar, nesse momento, questões que já pensávamos ter superado. As mulheres que estranham essas estruturas masculinas arcaicas, estão exaustas de dizer e lutar, e se encontram profundamente sozinhas ainda que os companheiros sejam solidários. A questão que se impõe é que eles não são capazes de abrir mão dos seus privilégios de macho e acabam por reproduzir relações pouco igualitárias entre os gêneros. Segue um relato que recebi, pelo instagram, e não citarei nome e nem qualquer característica que defina a pessoa que me enviou. 

“(…) Estou sem exercer a profissão há cinco anos (idade da minha filha) e venho sentindo o peso dessa escolha que me fez dedicar o corpo e a vida exclusivamente à criação que acredito que ela merece. Sou casada, meu esposo é uma pessoa linda e aberta ao diálogo, mas também é fruto dessa sociedade patriarcal e sinto que nada favorece que o cuidado, enquanto trabalho, seja divido de forma equilibrada entre pai e mãe. Afinal, ele sai todos os dias para trabalhar e eu fico aqui presa no âmbito privado, provendo as condições materiais, afetivas para que nossa filha tenha uma educação libertadora e livre de violência.

O fato é que a maternidade mudou toda a minha vida e minhas relações. Hoje não tenho trabalho, não tenho amigas para conversar sobre essas coisas porque no meu ciclo só ficaram mães, na sua maioria, pessoas desconectadas de uma visão crítica sobre política, capitalismo, feminismo e maternidade. Eu me considerava feminista radical, estudiosa das relações de opressão, combatente, militante…

Mas hoje me vejo uma mulher de discursos, de entendimento, mas sem conseguir me livrar das amarras do patriarcado. Sem conseguir minha própria liberdade. Sei que a gente nem se conhece, mas de alguma forma cheguei até você. O objetivo da minha busca era tentar descobrir se tem algum grupo de estudos sobre questões de gênero e feminismo que é a pauta que motiva minha vida. Aí apareceu seu nome. (…) sonho com um mestrado, em voltar a estudar o que gosto, conhecer pessoas que dialogam com o que eu acredito e assim voltar a me sentir viva novamente. E o primeiro passo que pensei seria descobrir se existem grupos de estudos, livros para indicar, encontros de pessoas/estudantes que partilhem desse mesmo interesse de estudo.

Desculpa o texto longo, o desabafo e a liberdade de vir falar de coisas tão íntimas e doloridas para alguém que nem conheço. Mas se puder me ajudar, e me resgatar desse buraco sem fundo que é a maternidade e da qual não consigo ampliar para uma vida além dela. Quero expandir, mas não sei por onde começar. Torço que leia minhas mensagens e possa me orientar de alguma forma. E obrigada pela paciência.”

Recebi essa mensagem que me deixou profundamente emocionada sobre o que nos une como mulheres, e volto à pergunta inicial: se os homens fossem justos e compreendessem que as tarefas cotidianas e de criação dos filhos são de ambos, pais e mães, será que estaríamos tão profundamente sozinhas, como essa jovem? Por que para uma mulher ter filho é assumir o serviço doméstico e, consequentemente, abrir mão de seus sonhos, enquanto os homens crescem profissionalmente e aumentam seus currículos? São tantas frentes para lutar, tantos caminhos a insistir em entrar que podemos, sim, sentirmo-nos exaustas. Descansemos, mas não podemos desistir! A luta por equidade de gênero precisa ser convocada de qualquer lugar em que você esteja nesse momento! Sigamos!

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).