Bemdito

Corpo, o primeiro instrumento do homem

Depois de tanto tempo confinados, é estranho para alguns recomeçar a partir de uma nova gramática de gestos
POR Cláudio Sena

Para o antropólogo Marcel Mauss, “o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem.”. Repito: o corpo. Não o avatar. Posso afirmar que, quando ele sintetizou tal pensamento, não havia nem sinal de mediadores comunicativos sofisticados, hologramas e realidade aumentada ou diminuída. Muito menos TikToks e filtros que fazem uma parte deste serviço de falar com a cabeça, tronco e membros. No tempo de Mauss, eram uma boa vestimenta gogó e intelecto, e a maneira de usar isso tudo no presencial que contava. Veja Mauss novamente: 

“Tudo em nós é comandado. Estou como conferencista diante dos senhores e os senhores o veem em minha postura sentada e em minha voz, e me escutam sentados e em silêncio. Temos um conjunto de atitudes permitidas ou não, naturais ou não.”

Para ser justo, o bom uso da pena também figurava como fundamental àqueles que tinham algo importante a dizer pela escrita. Ao longo dos anos, tal instrumento corpo parece ter sido um pouco escanteado. Não quero dizer, com isso, que deixa de existir o culto ao corpinho cada vez mais sarado, sobretudo aquele retratado pelas lentes e compartilhado como pedidos de “biscoito”. Mas, em um social vivido boa parte à frente das telas ou pensado para ser reproduzido por estas, o corpo perdia, em parte, a autenticidade e a verdade do momento presente. 

Parece que boa parte dos humanos conectados depende da mediação, do suporte tecnológico, da capa do virtual, do teclado, da câmera, de tudo que possa criar uma mascote controlável de nós mesmos. Algo que imprime nossas frustrações ou nossas pequenas felicidades na dosagem certa, embora nem sempre fiel à realidade. 

Nesse processo, as mãos que passeiam habilidosas pelo teclado não encontram local apropriado em meio a uma discussão cara a cara, suando, tremendo e entregando nervosismo. A voz modulada de acordo com a ocasião, gravada e regravada para atingir o interlocutor da maneira desejada só tem uma chance frente à audiência viva que lota um auditório com cheiro, cores e interferências sonoras incidentais.

O quadro agravou-se ainda mais na pandemia, com nossa dependência da Internet e com pessoas e interações ainda inéditas fora das telas. Parece que todo mundo tem o mesmo tamanho: sentado em cadeiras ou num contra plongé permanente da tela do celular. 

As emoções tão facilmente expressas por emojis criativos e variados que acertam quase na mosca sobre o que sentimos fazem falta. Para piorar, quando temos chances de encontrar os antigos novos ciberamigos na mesma sala, eles cobrem o rosto com máscaras (ainda bem). Ok, nem todos. Mesmo aqueles que não são influenciadores digitais, gente comum, parecem às vezes existir apenas com música e cores acentuadas. No caso dos mais tímidos, em bolinhas de Google Meet, desenhos ou ilustrações que, às vezes, ampliamos com intuito de captar algo, um único indício que possa transmitir um pouquinho da personalidade daquele com quem nos comunicamos. 

Outro aspecto ganhou o Planeta, mexeu no instrumento corpo e em suas ações: a uniformização e padronização dos gestos e cumprimentos em mundo pandêmico. Um tipo de linguagem universal. Chefes de Estado trocando soquinhos antes relegados à “galera” são um dos muitos exemplos de novos movimentos que estão naturalizando-se à força. Fora a borrifada ou a “gosmada” (volto aqui aos neologismos recorrentes em textos anteriores) de álcool em gel e tantas outras pequenas ações introjetadas no nosso cotidiano até pouco tempo estranhadas e, ao que parece, agora hábito de alguns.

Lembro-os que, para Mauss, é técnica do corpo aquilo que se configura como tradicional e eficaz. Neste contexto, o eficaz a gente entende. Mas vamos dar um desconto à tradição que, diante da Covid, teve de ocorrer com pressa e por imposição das circunstâncias.  

Depois de tanto tempo confinados, saindo apenas para encontrar as coisas e pessoas essenciais, é estranho para alguns recomeçar a partir de uma nova gramática de gestos. Em frações de segundos, quando encontramos alguém de muito apreço, temos de decidir como transformar aquele abraço abafado convertido agora em sinal de positivo com as mãos ou sorriso com olhos, por exemplo.

Ah, não chega muito perto também! Convenhamos, isso é difícil no Brasil. A gente nem imagina que se encosta tanto até sair do País ou, no caso atual, viver em meio a uma pandemia. Penso que já passei um pouco por isso em umas temporadas vivenciadas.

“Claudio, cuidado com a distância, não toque e não chegue muito perto ao falar com eles. Outra coisa: fale baixo”. Foi a dica de convívio com os franceses, repassada por minha orientadora, antes que eu embarcasse para Lyon. Mal sabia eu que se tratava de um treino pré-pandemia. Mesmo experimentado, não deixa de ser desafiador manter a compostura segura morando no Ceará, onde muitos de nós têm a necessidade de, além de falar, olhar e tocar. 

Para finalizar, deixe-me fazer uma ressalva e uma projeção. Primeiro, gostaria de afirmar que tenho plena consciência que este texto não fará sentido àqueles que não aderiram às medidas de biossegurança ou que já se habituaram ao mundo pós-pandêmico. Segundo, pelos abraços dos quais às vezes não consigo fugir nos reencontros ocorridos há pouco tempo e pelas máscaras no queixo ou mesmo ausentes, tenho a impressão de que vamos voltar a usar nosso corpo instrumento mais ou menos da mesma maneira, entre mediadores comunicacionais, em realidades mais carnais do que nunca.

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.