Bemdito

O homem sentado no passarinho

A fome não é boa professora, ou pelo menos não deveria ser
POR Jamieson Simões

A fome não é boa professora, ou pelo menos não deveria ser

Jamieson Simões
jamrsimoes@gmail.com

Meu pai era um santo homem. Conhecido pela sabedoria e pelo silêncio, era sempre procurado para aconselhar corações e mentes atormentados. Também havia os sonhos, como uma predição: ele sonhava e pouco tempo depois o que havia sonhado acontecia, de modo que ele antecipava o futuro. Aqueles olhos miúdos (herança indígena) viam muito além do real, ou, pelo menos, através do que viam, atribuíam sentido e significado, de modo que ele estava sempre preparado para o que a vida trouxesse.

Aqueles eram anos de pobreza e fome. O Bom Jardim de 30 anos atrás era marcado pelo desemprego, escassez, esquadrões da morte e violência generalizada. Nossa vida era tão frágil e precária quanto a de qualquer outra família do bairro. Éramos dez pessoas num casebre minúsculo, sustentados por um operário da construção civil e uma cozinheira. O pouco que chegava à mesa era repartido com os vizinhos ou pessoas que eram mais pobres que nós (parecia impossível mas havia gente mais pobre que nós).

Estávamos tentando comprar um terreno pra construir uma casa que nos coubesse. O dinheiro que conseguimos deu pra comprar um buraco, assim começou a saga por dias melhores. Meu pai teve um sonho nesse período. Sonhou que olhava para o céu e via um passarinho planando, até que começava a se aproximar do quintal de casa. Havia um homem montado no passarinho que pousou no quintal. Meu pai perguntou se vinha do norte ou do sul. O homem não responde nada. Entra pela cozinha e vai direto nos armários e nas latas de mantimento que estavam, no sonho e na realidade, vazias. Não falou nada e voltou para sua montaria alada. Já apeado, diz:

– Daqui a um tempo é outro tempo e já não haverá.

O homem parte voando e meu pai acorda. Guarda o sonho por dias, talvez anos. O fato é que depois daquele sonho nossa vida mudou. Meu irmão mais velho conseguiu uma bolsa de estágio e comi hambúrguer pela primeira vez na vida (devia ter uns 12 anos). Logo, todos meus irmãos e irmãs começaram a trabalhar e aterramos o buraco, começamos a construir a casa que moramos hoje e passamos a comer bem todos os dias. Tempos depois, meu pai contou o sonho que teve, ele sabia que a fome não nos assombraria mais. A fome é um espectro cruel que foi nossa companheira durante muitos anos, por muito tempo. E agora ela estava banida pelo milagre da educação, do trabalho e da oportunidade.

Todas as vezes em que meu pai contava aquele sonho os olhos dele umedeciam. A fome é professora, já dizia Conceição Evaristo. O fato é que eu não quero ter sonhos que predigam o fim da fome. Também abomino essa lição que tem a fome por professora. Não quero mais aprender com ela. Eu quero comer do bom, do mel e do melhor e que isso seja comum, pra qualquer um, qualquer uma. Eu quero comer o mundo.

Jamieson Simões é um corpo-negro no mundo com toda potência que isso implica. Está no Instagram.

Jamieson Simões

Pesquisador em juventude e violência, é assessor do Comitê Cearense de Prevenção à Violência da Assembleia Legislativa e mestrando em sociologia na UFC.