Bemdito

Sobre o direito de não ser capaz de opinar

O limite dos nossos posicionamentos nas redes sociais e a repercussão em nossas experiências
POR Desirée Cavalcante
Le discret (Joseph Ducreux)

O limite dos nossos posicionamentos nas redes sociais e a repercussão em nossas experiências

Desirée Cavalcante
desireecavalcantef@gmail.com

Uma frase que insiste em retornar às páginas das redes sociais afirma que quase ninguém está bem. O pedido para que sejamos gentis uns com os outros aponta para o fato de que o campo das – antes prevalecentes – alegrias intermináveis e do brilho ofuscante começou a ceder lugar para revelações de algo que a experiência social nos apresenta sem muita cerimônia: os dias têm sido pesados para muitos de nós.

Curiosamente, o meio escolhido para realizar o pedido de gentileza está longe de possibilitar uma experiência plena de acolhimento e compreensão. Na verdade, uma metalinguagem contraditória aponta a insatisfação com praticamente tudo que tem sido publicado nas redes sociais, nos mais diversos formatos. Talvez seja um produto de bolhas ou apenas um reflexo de preferências individuais. Mas críticas igualmente ferozes à profissionalização dos perfis – revelada na incessante busca intenção intelectual, econômica ou moralmente superior de cada publicação – são atropeladas por queixas quanto à proliferação de dancinhas e à infantilização generalizada.

Não há um consenso se estamos mergulhados em infantilidade e futilidade ou se perdemos a capacidade de sermos espontâneos e não profissionais. Às vezes, o mesmo perfil elabora críticas das duas naturezas. Como se não soubéssemos se gostamos das fotos de comida, se preferimos as semanas gratuitas de um curso qualquer, se rejeitamos uma vitrine de mentiras, seguimos ocupando as lacunas com reclamações. Comunicar que algo incomoda, definitivamente, gera engajamento. É preciso, no entanto, pensar se as redes sociais não têm se tornado uma fonte de censura e cobrança desnecessárias.

Parece haver uma espécie de pressão para a transformação de todos em influenciadores profissionais que não é compatível com manifestações individuais espontâneas: desde cobranças àqueles que se isentam de responder enquetes do Instagram – como se essas tivessem sido elevadas a consultas populares da máxima seriedade -, até a exigência por posicionamentos explícitos sobre todos os temas de grande repercussão. As redes sociais parecem caminhar para a confusão definitiva entre o espaço público desorganizado e a esfera privada dos usuários.

Ocorre que o excesso de opiniões, cobranças e reclamações repercute sobre a nossa experiência individual e sobre as relações sociais. A possibilidade de ter um posicionamento sobre qualquer assunto – com o conforto do anonimato ou da possibilidade de saída do debate com o apertar de um botão – agravou o sintoma de sermos especialistas de tudo e nada.

O perfil de ninguém precisa ser alçado à arena de debate. Assim como não é possível exigir capacitação para emitir opinião sobre tudo, também é necessário reconhecer que o espaço disponível para pontuar algo com mais complexidade pode ser insuficiente ou mesmo que o simples fato de não debater determinado tema naquele contexto é um direito legítimo dos usuários. Ao mesmo tempo, para aqueles que optam por se manifestar, há de ser considerado que o posicionamento nas redes não é algo realizado no vazio. Para quem opinamos? O quanto estamos abertos a dialogar? O quanto estamos dispostos a ouvir opiniões contrárias? Para que serve, afinal, aquele canal?

Não se trata de fazer um grande exame sobre cada foto ou cada palavra publicada. É preciso considerar, no entanto, para que serve esse ambiente em que passamos tantas horas dos nossos dias, o que temos extraído dele e o que queremos de fato. Precisamos considerar sobretudo que a nossa experiência e as nossas preferências não precisam ser compartilhadas por outros usuários.

Desirée Cavalcante é advogada, professora e pesquisadora na área de Direito Constitucional. Está no Instagram.

Desirée Cavalcante

Advogada e doutoranda em Direito pela UFC, é professora de cursos de pós-graduação e 1a vice-presidente da Comissão Especial Brasil/ONU de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã da OAB/CE.