Bemdito

Poço 115: um álbum imaginário para a comunidade visível

Em homenagem a uma das ocupações mais antigas de Fortaleza, um álbum de memórias sobre o vento que corre entre duas pontes da Praia de Iracema
POR Felipe Camilo

Em homenagem a uma das ocupações mais antigas de Fortaleza, um álbum de memórias sobre o vento que corre entre duas pontes da Praia de Iracema

Álvaro Graça Júnior
bemdito@gmail.com

Felipe Camilo
felipecamilomk@gmail.com

Quem partilha a construção de pontes registra o encontro de trajetos contrários. Alguém vem de lá, outro vai de cá. Fluxo e contrafluxo, como este mesmo mar sobre a areia, mantra renitente. Como este vento incessante e brando, essas imagens se espalham entre as pontes, entre a nossa Velha Ponte Metálica e a Ponte dos Ingleses. Este mesmo vento que areja as casas do Poço conecta gerações de ancestrais e vizinhos, faz pontes diversas entre estes planos.

Contra mega construções turísticas (e através de suas ruínas), é com pouco concreto que a comunidade visível ergue a sua obra, a sua Fortaleza de memórias, o seu álbum-imaginário. Ao olharmos as fotografias reunidas aqui, percebamos as pontes, os trilhos, as vielas e veredas construídas entre elas. Sua argamassa são afetos emaranhados, são os laços dessa vizinhança centenária de pele escura.

Olha lá o Poço da Draga, vazando nas dezenas de álbuns fotográficos de Ivoneide Gois! Vê lá Fortaleza, década a década do meio do século XX pra cá, saltando dos murais de fotos nas casas vizinhas! Olha lá o Baixa Pau no celular de João Brito, velho meia-esquerda do Brasileirinho! Vê lá Fortaleza nos álbuns escondidos das caixas de sapato de Alvinho, presidente e trivela do Brasileirinho Futebol Clube. Vê o Baixa Pau nos álbuns e no celular de Cláudio He-man.

Vê Fortaleza nas visitas guiadas de Sérgio Rocha, no seu palavrório poderoso, cheio de fotos antigas nas mãos. Olha o Poço nos filmes cheios de fotos de Victor de Melo! Vê Fortaleza nos saraus de Dona Iolanda, na Velaumar cuidada por Tina e Marilac, nos álbuns de capoeiristas, em suas paredes, nos celulares dos triatletas, nos perfis de Instagram dos surfistas! Eis o Poço, eis a cidade, eis a comunidade visível.

Aqui nos referimos ao pequeno bairro circunscrito entre o centro comercial e as ruínas de nosso primeiro porto, região historicamente marcada pelo movimento abolicionista cearense, que se fez ícone nacional nas figuras de José Luís Napoleão e Chico da Matilde (Dragão do Mar). Esse território hoje abriga população de pele preta.

Sim, creiam! Existe gente preta na terra do Navegante Negro. Há ali, entre seus moradores, um encontro entre a narrativa oral e a fotografia – relacionado aos esforços biográficos e a uma política de defesa do território. A conservação e a transmissão da memória possuem tônica ancestral no Poço. Os velhos memorialistas de esquina, de calçada e de WhatsApp estão sempre a nos convidar, vizinhos e passantes, a imaginar a comunidade visível com eles.

São eles que animam o imaginário desse álbum de fotos reavizinhadas. Ah, as velhas fotografias da família Graça, salve Maria Clara, Teco e Alvinho. Salve os álbuns da família Vasconcelos, salve dona Nilce, salve Cláudio (o He-man). Salve a família Goes, salve Ivoneide, Djeyne e Joãozinho.

Enlinhados estão os fios de suas memórias. Também emaranhadas, suas fotos nos permitem imaginá-las num álbum só. Se pudéssemos folheá-lo, sentiríamos também o vento que corre entre as pontes. E também o mantra do mar, que de tanto ir e vir, é o movimento que fica.

Poço da Draga, 115 anos, 26 de Maio de 2021.

Álvaro Graça Jr. é realizador audiovisual e morador do Poço da Draga. Está no Instagram.

Felipe Camilo é artista negro e pesquisador (antropologia, imagem, memória e negritude). Está no Instagram.

Dayane Araújo é fotógrafa. Está no Instagram.

PS: Poço 115 – Um álbum imaginário para a comunidade visível é uma investigação artística forjada e reforjada ao longo de 4 anos e é também uma fotolivro em finalização. Trata-se de uma coautoria entre o documentarista, morador do Poço, Álvaro Graça Júnior e o artista e pesquisador Felipe Camilo. O Álbum é “obra irmã” da tese de Felipe: Comunidade Visível: Narradores de Imagens e Memórias do Poço da Draga, produzida na Universidade Federal do Ceará (UFC). As fotografias aqui presentes também contam com a colaboração de Ivoneide Gois e Dayane Araújo.