Bemdito

Constituinte no Chile, desconstituinte no Brasil

Em tempos de ataques à Constituição cidadã de 88, o Direito brasileiro é empurrado em direção à própria extinção
POR Thiago Álvares Feital
Foto: Agência Senado

Em tempos de pulsão desconstituinte e de ataques à Constituição cidadã, de 1988, o Direito brasileiro é empurrado em direção à sua própria extinção

Thiago Álvares Feital
thiago.feitalv@gmail.com

Em 1973, quando Salvador Allende foi deposto por um golpe no Chile, o Brasil já estava sob ditadura há nove anos. Sob o comando de Médici, o Exército brasileiro iniciava sua última campanha na Guerrilha do Araguaia. O objetivo — desaparecer com todos os combatentes — foi tão bem executado que, até o momento, dos cerca de 70 membros, apenas dois tiveram seus restos mortais identificados.

Os desaparecimentos forçados e a recusa do Estado em resolvê-los levaram a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a condenar o Brasil em 2010 por “violação múltipla e continuada de direitos humanos”. A recusa do Estado brasileiro se fundamenta, juridicamente, diga-se de passagem, em uma lei (a Lei de Anistia de 1979) que a mesma Corte Interamericana considera incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos e, portanto, incapaz de produzir efeitos jurídicos.

Quando a ditadura no Chile chegou ao fim, em 1990, a Constituição brasileira tinha pouco menos de um ano e meio. Era um documento fresco e cheio de esperança, que simbolizava a ruptura com a ordem autoritária e violenta do passado. Nas palavras de Ulysses Guimarães, que presidiu a Assembleia Constituinte, a nova constituição era promulgada — “que a promulgação seja o nosso grito” — para romper com o passado: “a nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança.”

Toda constituição é um pacto, um ponto de partida para o futuro. É natural, portanto, que rupturas políticas levem à elaboração de novas constituições ou mobilizem esse desejo. Mas os países têm tempos e contextos diversos. Ao contrário do Brasil, que, ao sair da ditadura, entrou em uma fase constituinte, a Constituição do Chile — aprovada durante o regime Pinochet, em 1980 — não foi substituída quando o país voltou à democracia. Isto não significa que ela tenha permanecido exatamente a mesma. O texto foi sendo ajustado às necessidades da sociedade por meio de emendas e sofreu modificações substanciais em 1989 e 2005. Mas a mancha de ilegitimidade de uma Constituição que não resultou de um processo democrático permaneceu.

A Constituição chilena é talvez o exemplar mais bem acabado de uma constituição neoliberal. Nela, características fundamentais do neoliberalismo são cristalizadas em um texto extremamente rígido. É uma constituição que, paradoxalmente, busca afastar o povo da política, dificultando a sua alteração. Seus “[…] mecanismos contramajoritários orientam-se para neutralizar a agência política do povo”, reduzindo o espaço de deliberação democrática. É também uma Constituição bastante tímida no que diz respeito aos direitos sociais, o que contraria inclusive o padrão adotado pelos países da região.

A Constituição brasileira é o oposto. Classificada como “dirigente”, termo popularizado por José Canotilho, a ambição materializada em seu texto é enorme. Sua dimensão pode ser vislumbrada nos verbos fortes do artigo 3º: construir, garantir, erradicar, promover. São objetivos com os quais nos comprometemos e que justificam a existência do Estado. Dentre eles, “construir uma sociedade livre, justa e solidária.” 

Como uma antítese da Constituição chilena, a brasileira estabelece literalmente que a economia possui uma finalidade: está submetida aos objetivos constitucionais e deve “[…] assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social […]”, como prevê o seu artigo 170. Para realizar os seus objetivos, a Constituição elenca direitos econômicos e é rica em direitos sociais, distribuídos por um capítulo especialmente dedicado à matéria.

Apesar de não ser possível saber de antemão qual será o resultado da constituinte chilena, há uma movimentação para que a nova constituição incorpore direitos sociais na condição de direitos subjetivos — opção adotada pelo Brasil e 1988. Segundo Magdalena Sepúlveda Carmona, diretora executiva do Global Initiative for Economic, Social and Cultural Rights (GI-ESCR):

“No Chile, por mais de 40 anos, construíram-se mitos acerca da infalibilidade do mercado; do “gotejamento” ou crescimento econômico como único mecanismo para retirar da pobreza os mais marginalizados e a privatização como fonte de eficiência econômica e bem-estar para todos. Por décadas, as elites não pouparam esforços para nos convencer de que os direitos sociais não são verdadeiros “direitos”, e que não é necessário nem viável garanti-los na Constituição. São estes mitos que agora cabe desbancar por meio de evidência, experiência comparada e organização coletiva.”

Por aqui, parecemos caminhar em sentido contrário. Enfrentamos uma pulsão desconstituinte — um misto daquilo que Marcelo Cattoni chama de “ato desconstituinte” com a hipótese freudiana da pulsão de morte. A exemplo desta última, que impele o sujeito à autodestruição, a pulsão desconstituinte empurra o Direito brasileiro em direção à sua própria extinção. É o resultado da impotência e da recusa de elaborar o passado com o qual a Constituição de 1988 quer romper. Se a Constituição de 88 recebe o apelido de “Constituição cidadã” — porque em seu núcleo está um conceito forte de cidadania —, a pulsão desconstituinte ataca justamente a cidadania.

O trabalho que o artigo 3º impõe é enorme. Diante da grandiosidade desta tarefa, há quem opte por recusá-la de pronto e, com isso, ceder ao fatalismo de uma ideologia que nega que o direito tenha a capacidade de transformar a realidade. Como se a economia fosse comandada por leis imutáveis, fora do alcance da política, a pulsão desconstituinte ataca sobretudo os direitos sociais. Nesta ideologia, os direitos sociais são utopias irrealizáveis, devaneios que devem ser limitados. No mesmo movimento, o que está sendo atacado é a cidadania social, que se torna uma obsessão daqueles que defendem a eterna pauta de redução do Estado.

As Emendas Constitucionais n.º 95 e 106 são os exemplos mais evidentes desta pulsão, mas não são os únicos. O ímpeto de corroer a Constituição para eliminar o que seriam excessos é cotidianamente repetido no discurso público. O modelo brasileiro seria inclusive um mau exemplo que os chilenos deveriam evitar. A Constituição é acusada aqui de exagero, um exagero irresponsável: ela elenca mais direitos do que teríamos condição de pagar, é impraticável.

O constitucionalismo latino-americano vai de encontro a essa ideologia, pelo menos desde a Constituição mexicana de 1917. Essa tradição — que atingiu uma sofisticação ímpar na Constituição de 88 — pode ser lida como uma resposta às políticas da morte que dilaceram a América Latina há séculos. Não por acaso, os direitos humanos são uma força viva nos movimentos sociais da região, ultrapassando em muito a esfera dos aparelhos institucionais — da CIDH, por exemplo — para se tornar caixas de ferramenta na construção cotidiana de direitos mais justos.

Os ventos desta tradição crítica sopram a favor do Chile. As experiências dos países vizinhos são muitas e constituem um acervo comum daqueles que lutam pela justiça social. Que o Chile saiba beber desta fonte e consiga desenhar uma Constituição que reflita os anseios de seu povo. Por aqui, podemos aproveitar o momento para repensar a relação que temos com a nossa própria Constituição, este instrumento potente, porém subutilizado.

Encerro invocando Mercedes Sosa, a voz deste continente. Vamos buscar o que desejamos!

America latina
Tiene que ir de la mano
Por un sendero distinto
Por un camino mas claro
Sus hijos ya no podremos
Olvidar nuestro pasado
Tenemos muchas heridas
Los latinoamericanos
Vivimos tantas pasiones
Con el correr de los años
Somos de sangre caliente
Y de sueños postergados
Yo quiero que estemos juntos
Porque debemos cuidarnos
Quien nos lastima no sabe
Que somos todos hermanos
Y nadie va a quedarse a un lado
Nadie mirara al costado
Tiempo de vivir
Tiempo de vivir
Nada de morir
Vamos a buscar lo que deseamos
Nadie va a quedarse a un lado
Pronto ha de llegar
Tiempo de vivir

Thiago Álvares Feital é advogado e professor. Está no Twitter

Thiago Álvares Feital

É advogado, professor, doutorando e mestre em direito pela UFMG. Pesquisa tributação, desigualdade, gênero e direitos humanos.