Bemdito

Forças Armadas e política no Brasil #1

A participação dos militares na política brasileira não é algo novo. Ao longo de nossa história, vários foram os episódios em que as Forças Armadas tomaram para si a tarefa de conduzir os rumos da nação
POR Monalisa Torres

A participação dos militares na política brasileira não é algo novo. Ao longo de nossa história, vários foram os episódios em que as Forças Armadas tomaram para si a tarefa de conduzir os rumos da nação

Monalisa Torres
monalisa.torres@uece.br

O protagonismo militar na política brasileira é fenômeno recorrente em nossa história. José Murilo de Carvalho, um dos nossos maiores historiadores, em livro sobre a participação de militares na política nacional (cujo título humildemente tomo de empréstimo para esse artigo), chama a atenção para o caráter tutelar de nossas Forças Armadas (FA). Para ele, a autoimagem das FA é de que são uma espécie de “poder moderador”, que hoje encontraria amparo na ambígua redação do Artigo 142 da Constituição Federal. Segundo o texto, aos militares caberia o papel de garantidores dos poderes constituídos.

A partir de uma percepção da incapacidade civil de conduzir a sociedade brasileira à modernização, restaria às FA atuarem como “vanguardas modernizadoras”. Munidos de formação especializada e concebidos como “verdadeiros depositários do interesse público”, os militares seriam responsáveis pela elaboração e implementação de um projeto alternativo que levasse ao desenvolvimento do país.

Ao longo de nossa história, em momentos de grandes crises do sistema político-institucional, o aumento da desconfiança e da corrosão da legitimidade da classe política, observamos a emergência de atores “não-políticos” com a pretensão de liderar projetos de desenvolvimento (e de poder). Foi assim, por exemplo, em 1889, quando o Exército derrubou a monarquia e instaurou a República.

De lá para cá, outros momentos de crise e instabilidade política estimularam militares a saírem da caserna para “corrigir” os rumos da nação. Dessa ideologia salvacionista – derivada de uma autoimagem de “personificação do patriotismo”, da compreensão de que seriam os únicos com capacidade técnica (tecnocracia ilustrada) e valores (já que devotariam a vida pela Pátria) para, num cenário de passividade do povo e de uma República incapaz de se autogovernar, “salvar a nação” – resulta que a obediência ao governo dependeria da legalidade de suas ordens, interpretadas por figuras de referência (principalmente o Clube Militar). Essa foi a postura adotada em diferentes momentos.

Nossa história é farta de episódios do envolvimento militar na política: movimento tenentista, que abriu caminho para o golpe de 1930; depois disso 1937, 1945, 1954, 1955, 1961 e 1964. Este último significou a interrupção da democracia e a implementação de regime autoritário que perdurou por duas décadas. Não custa lembrar!

A volta dos militares aos quartéis a partir de 1985, o retorno do comando político aos civis e o restabelecimento da ordem democrática no país parecia indicar o fortalecimento das instituições democráticas. Não haveria, portanto, preocupação quanto à possibilidade de um novo golpe militar. As instituições estavam funcionando e as FA dedicavam-se à atividade que lhe é própria: a defesa. A questão parecia superada.

Mas a polêmica criada pelo General Villas Boas, então comandante do Exército, na véspera do julgamento sobre o habeas corpus de Lula pelo STF, em 3 de abril de 2018, acendeu sinal amarelo. Em seu perfil no Twitter, o general escreveu:

“Asseguro à nação que o Exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões constitucionais.”

Aquele “tuíte de alerta” (nas palavras do general), repercutiu fortemente na mídia e na opinião pública. No dia seguinte, em votação apertada, o STF rejeitou o habeas corpus que garantiria que Lula, líder nas pesquisas de intenção de votos, concorresse nas eleições de 2018.

Depois desse episódio, a chegada de um ex-capitão do Exército, Jair Bolsonaro (sem partido), ao Palácio do Planalto, inauguraria novo capítulo do protagonismo militar na política brasileira. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), atualmente, há mais de seis mil militares com cargos no governo Bolsonaro, sendo mais de três mil deles da ativa – além de militares no comando de pastas do primeiro escalão do Executivo federal, a exemplo do Ministério da Saúde (Eduardo Pazuello, que foi recentemente substituído pelo médico Marcelo Queiroga).

O que esses números indicam? Estamos diante de um processo de militarização do governo? Quais as implicações da presença de tantos militares em pastas importantes?

(Continuaremos esse debate na próxima coluna)

Monalisa Torres é professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC) e colunista do Bemdito. Pode ser encontrada no Instagram.

Esse artigo contou com a revisão preciosa do sociólogo e estimado colega Yuri Cruz (@yurihcruz).

Monalisa Torres

Doutora em Sociologia pela UFC e analista em jornais, integra o projeto "Governos estaduais e as ações de enfrentamento à Covid-19 no país", organizado pela Associação Brasileira de Ciência Política e o jornal O Estado de S. Paulo.