Bemdito

No país da fila do osso, offshores

Como o escândalo dos Pandora Papers lança luz sobre a desigualdade de renda e tributação no Brasil
POR Thiago Álvares Feital
O ministro da economia Paulo Guedes (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

No último dia 3, matéria publicada pela Piauí revelou que o ministro da economia e o presidente do Banco Central mantêm offshores milionárias em paraísos fiscais. A reportagem foi parte de um projeto global de jornalismo investigativo, denominado Pandora Papers, conduzido pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), que encontrou offshores de vários líderes políticos no mundo.

Uma offshore é uma empresa criada em um país onde a tributação da renda é nula ou negligenciável, com o único intuito de escapar do tributo no país de origem de seus criadores. Como se apressam sempre a dizer os pregoeiros da legalidade de classe (aquela que existe para punir os pobres e proteger os ricos, sobre a qual já falamos aqui), não há nada de ilegal nisso. Pelo contrário, o direito brasileiro regula o mecanismo exigindo que o titular declare a existência dos valores no exterior à Receita Federal do Brasil e ao Banco Central. Além disso, na eventualidade de repatriar os valores que estavam no exterior, deverá declarar a operação que se sujeita à tributação pelo Imposto sobre a Renda. 

A clareza da legalidade neste debate é justamente o que chama atenção. Tratando-se de algo tão cristalinamente lícito, onde está o escândalo dos Pandora Papers? A transferência de recursos para o exterior não é uma questão puramente individual, atrelada ao direito do contribuinte ao planejamento de suas finanças. Trata-se de um problema coletivo, uma vez que priva o país de recursos necessários para realizar os direitos econômicos e sociais, como saúde e educação. O problema é mundial, mas o Brasil se destaca. Segundo estimativas, o país perde 13,4% do PIB com a evasão. A erosão da base tributária obriga o país a focar a arrecadação em bases menos móveis para tentar compensar as perdas de receitas. 

O sistema tributário real funciona sob uma premissa simples de duas partes: pobres pagam tributos enquanto os ricos se planejam. Como receitas públicas para o financiamento de direitos não brotam em árvore, o circuito é fechado: os ricos conseguem escapar da tributação, o Fisco corre atrás dos pobres que não conseguem e estes acabam por custear os próprios programas sociais que vão atendê-los. Há uma nota de crueldade característica neste esquema, pois na sequência os pobres serão criticados por “viver às custas” do Estado, serão chamados de irresponsáveis, que não sabem poupar, quando, na realidade, estes suportam uma carga tributária cada vez maior para sustentar aqueles que conseguem exercer o direito ao planejamento. Não sendo um problema legal — até mesmo porque os limites da legalidade são traçados (a giz) por aqueles que se beneficiam da evasão — não deixa de ser um problema jurídico com implicações gravíssimas para a democracia. 

É em razão do impacto da evasão para a desigualdade social que a OCDE — onde Paulo Guedes quer que o Brasil esteja — recomenda aos seus membros a adoção de medidas para coibir esta prática. Afinal, ou somos todos iguais e assim nos sujeitamos aos tributos conforme nossa capacidade de contribuir para as despesas públicas — um ideal velho como a Revolução Francesa, mas esquecido na prática —  ou nos sujeitamos a um direito do mais forte, a uma legalidade do mais esperto. Parafraseando Anatole France, diríamos que o direito tributário brasileiro em sua majestosa igualdade, permite a todos os contribuintes, os pobres como os ricos, manter offshores. Não tem quem não quer.

Colocando de lado toda a discussão tributária, os Pandora Papers trazem uma revelação ainda mais grave, pois restando comprovado que o Ministro da Economia manteve-se à frente da administração da offshore, há violação expressa ao Código de Conduta da Alta Administração Federal. O documento — criado para prevenir que agentes públicos possam se beneficiar financeiramente das decisões que tomam no exercício de suas funções de governo — proíbe “funcionários do alto escalão de manter aplicações financeiras, no Brasil ou no exterior, passíveis de ser afetadas por políticas governamentais.”

O conflito de interesses aqui é tão claro quanto grave: não só o Ministro da Economia tem dentre suas atribuições centrais matérias diretamente relacionadas ao “sucesso” de sua offshore — como há indicativos de que o Ministério da Economia — se contrapondo à Receita Federal — tenha avalizado a derrubada de dispositivos da reforma do imposto sobre a renda que prejudicavam os interesses do ministro. É também para evitar que este tipo de dúvida gravíssima paire sobre os atos de governo que a regra do Código de Conduta existe.

Recentemente critiquei a “falta de rumo” da proposta de tributação da renda. Afirmei que à proposta parecia faltar um norte. De um lado, por exemplo, se afirma que o objetivo maior do projeto é fortalecer o Bolsa Família, de outro negocia-se nos bastidores, com o aval do Ministério da Economia, a possibilidade de se repatriar recursos pagando não 15%, mas 6% em 2022, ficando isenta a repatriação posteriormente. Se o objetivo da medida for — como declarado pelo relator — compensar a queda na arrecadação provocada pela isenção de lucros e dividendos que será concedida a empresas do Simples Nacional, a medida é inadequada. Se o objetivo for outro, talvez a medida seja pertinente. Em qualquer caso, no país da fila do osso, os pobres seguem pagando mais impostos, enquanto o ministro da Economia mantém offshores, tudo dentro da legalidade, ainda que não da mais cristalina.

Thiago Álvares Feital

É advogado, professor, doutorando e mestre em direito pela UFMG. Pesquisa tributação, desigualdade, gênero e direitos humanos.