Bemdito

O país da vacina vai às urnas

Israel decide mais uma vez o que fazer com o primeiro-ministro Benjamim Netanyahu, acusado de corrupção e campeão de vacinação
POR Wanderley Neves
Foto: Tânia Régia

Israel decide mais uma vez o que fazer com o primeiro-ministro Benjamim Netanyahu, acusado de corrupção e campeão de vacinação

Wanderley Neves
nevesn@gmail.com

Ele comandou a campanha de vacinação contra a Covid-19 mais bem-sucedida do mundo, com 52% da população já completamente imunizada com duas doses. Ele é alvo de cinco processos por corrupção variada, de joia da esposa a favorecimento em compra de submarinos e, claro, negociação de cobertura favorável na mídia. Ele resolveu colocar o nome na cédula de votação e tentar o sexto mandato. O que aconteceu, então, com Benjamim Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, nas eleições da última terça-feira, 23 de março?

Antes de tudo, é preciso dizer que essa foi a quarta eleição geral em Israel nos últimos 2 anos. Depois de dois pleitos que acabaram sem formação de governo, em abril e setembro de 2019, um acordo garantiu a permanência de Netanyahu, do Likud, à frente de um governo de união nacional após as eleições de 2 de março do ano passado. Uma ampla, mas frágil coalizão – montada depois de quase 2 meses de negociação -, evitou novas eleições no auge da primeira onda da pandemia de Covid-19. Mas a possibilidade de dar certo era tão pequena que deu errado: durou apenas 7 meses.

Naquela eleição, a coligação anti-Netanyahu de centro-direita Azul e Branco, liderada por Benny Gantz, chegou em segundo, com 33 dos 120 assentos do Knesset, o parlamento unicameral de Israel. O Likud de Netanyahu, com 36 assentos, seguiu sendo o maior partido, mas suas alianças não conseguiram chegar à maioria de 61 votos. Numa dessas mágicas do parlamentarismo, Gantz foi então indicado pelo presidente Reusen Rivlin para a tarefa de formar um governo. Mas o prazo venceu sem que ele conseguisse, o que levaria o país para novas eleições em pleno abril de 2020.

Pausa para o sorriso de Mona Lisa de Netanyahu.

Em vez de primeiro-ministro, Gantz foi eleito presidente do Knesset e segurou a votação do projeto de lei que proibiria um réu por corrupção de exercer o cargo de primeiro-ministro, o que praticamente encerraria a carreira política de Netanyahu. Estava aberto o caminho para o grande acordo nacional, que foi se insinuando.  No fim de abril, Gantz, que havia baseado sua campanha na promessa de não entrar numa coalização com o Likud, anunciou as pazes.

A grande inovação é que Netanyahu e Gantz iriam se alternar na função de primeiro-ministro, ficando Netanyahu nos primeiros 18 meses. Até outubro de 2021, Gantz seria ministro da Defesa e teria um novo (e difícil de traduzir) título: primeiro-ministro em alternância (em inglês, alternate prime minister), uma espécie de príncipe-herdeiro. Com as tantas divergências em temas como o plano de “paz” proposto pela Casa Branca de Donald Trump ao serviço militar de judeus ortodoxos, o governo já nasceu instável.

Mas as partes são tão confiáveis que o acordo foi formalizado em lei em todos os seus detalhes. Inclusive com vários botões de ejeção: caso o primeiro-ministro convocasse nova eleição, Gantz assumiria até ser formado novo governo; com uma exceção: caso o orçamento de 2021 não fosse aprovado, o próprio parlamento se dissolveria, provocando nova eleição. Adivinha o que aconteceu? Em dezembro, sem orçamento, o governo caiu antes de Benny Gantz se tornar premiê.

Mais uma pausa para o sorriso de Mona Lisa de Netanyahu.

Netanyahu sem dúvidas perdeu a eleição desta semana. Mas sem tudo isso, fica difícil entender os caminhos para um novo governo. Com o acordo do ano passado, Netanyahu conseguiu dissolver a aliança Azul e Branco, única força que conseguiu chegar perto de desbancar o Likud, no poder desde 2009. Com a oposição fragmentada, chegamos agora a um resultado em que o segundo partido, Yesh Atid (centro secular), tem apenas 17 assentos, contra 30 do Likud, tornando muito mais difícil sustentar um governo que não inclua o partido mais votado.

Se tem uma coisa que a política ensina é que nunca se pode subestimar as possibilidades de divisão ideológica, não importa quão pequeno seja o grupo. Apesar de Israel ter uma população menor do que a do Ceará e uma provável homogeneidade por ser um Estado oficialmente judeu, há partidos de esquerda e direita, mas também árabes e judeus, judeus religiosos e seculares, religiosos moderados e ultra ortodoxos. Num país que pende para a direita desde a chegada do Likud, nos anos 1970, há quase tantos partidos de centro-direita quanto no Brasil. E os acordos e dissidências fazem partidos e blocos parlamentares surgirem e sumirem como na Itália.

Já prevendo a dificuldade para conseguir a maioria, Netanyahu acenou ainda durante a campanha para os partidos que formam a Lista Árabe Unida, que até agora não anunciou de que lado ficará e pode ser o primeiro bloco árabe a ter o destino do Estado judeu nas mãos. Isso em si já é um acontecimento enorme. Mas essa coalizão não poderia prescindir dos seis assentos da lista liderada pelo Partido Religioso Sionista, que inclui candidatos do Poder Judeu (Otzma Yehudit), partido de ideologia kahanista, defensor de um Estado teocrático sem nacionalidade ou direitos políticos para não-judeus. Seria também a primeira vez que o partido desavergonhadamente racista chegaria ao governo.

Se esse é um preço que Israel está disposto a bancar para Netanyahu se livrar da cadeia por mais um tempo, ainda não é possível saber. Hoje a principal possibilidade que circula na mídia israelense é que um novo governo não vai ser formado frente a tantos limites desenhados de cada lado; e quantos são os lados! Não muito diferente do que se dizia após a última eleição. Em 2020, a explosão da pandemia foi crucial para abaixar as armas. Hoje nem a campanha de vacinação mais bem-sucedida do mundo conseguiu dar uma vitória convincente a Netanyahu. Seria um indício de que a Covid não vai ser decisiva nas eleições que vêm aí pelo mundo? Muito cedo para saber.

A cada nova eleição, o fim de Netanyahu parece mais próximo, a fadiga de uma década no poder parece mais clara. Ainda assim, ele continua sendo o centro da política israelense. E aqui mesmo foi mais um texto inteiro em volta dessa figura da qual não se pode escapar no tecido do Oriente Médio. Dos animais políticos que habitam esta Terra geoide, com certeza um dos mais sagazes (para o bem e para o mal, como diria um coach do Instagram).

Shabat shalom!

Wanderley Neves é jornalista. Está no Twitter.

Wanderley Neves

Jornalista especializado em economia e política internacional.