Bemdito

O abandono em carne e osso

Os paralelos das reflexões sobre perda, dor e luto em Elena Ferrante e Natalia Timerman
POR Jáder Santana
Detalhe de tela do pintor inglês Walter Langley, 1883

Os paralelos das reflexões sobre perda, dor e luto em Elena Ferrante e Natalia Timerman

Jáder Santana
jaderstn@gmail.com

A comparação sempre vai surgir. Copo Vazio, romance de estreia da médica psiquiatra Natalia Timerman, lançado no início de 2021, compartilha muito da narrativa de desespero feminino de Elena Ferrante em Dias de Abandono, de 2002. A analogia é ainda mais pertinente quando levamos em conta que Timerman estuda a tetralogia da italiana – e a série Minha Luta, de Karl Ove Knausgård – em seu doutorado em literatura na Universidade de São Paulo (USP). Mais que isso, há o elemento essencial: ambas são mulheres.

Assim como Timerman, coloco Ferrante e Knausgård em posição de destaque no rol de descobertas literárias que impactaram minhas horas de leitura na última década. Li tudo que era dela. Dele, estou finalizando o último romance publicado no Brasil. Digo isso porque, como leitor, sinto, na série de Knausgård, a identificação das experiências masculinas. Com Ferrante, embora ainda sejam geradas identificações fundamentais que independem de gênero, posso reconhecer elementos que, certamente, ecoarão de forma muito mais profunda em mulheres. Nada surpreendente, o inconsciente coletivo e os arquétipos de gênero dão conta de explicar. 

Então, aqui, escrevo sobre Copo Vazio a partir de um ponto de vista estritamente masculino, com todas as incoerências e hiatos que comentários que se debruçam sobre questões fundamentais e estruturantes do gênero oposto podem gerar. Dito isso, é com alguma segurança que coloco o romance de Timerman ao lado do de Ferrante e afirmo que ambos são poderosos em sua construção e sinceros em sua narrativa. Dito de outra forma, são obras que devem impactar leitores e leitoras em uma relação de identificação que está calcada na estruturação das relações conjugais e na forma como fomos deseducados a lidar com a perda ao longo da história. 

A trama de Ferrante já deve ser conhecida por muitos de vocês. Olga, uma mulher bem sucedida de meia idade, vive seus dias de abandono após o fim do casamento de quinze anos com Mario. Em Copo Vazio, Mirela é lançada na mesma espiral de desespero depois que o namorado de três meses decide desaparecer de sua vida sem deixar vestígios que expliquem a súbita resolução. Quinze anos em Ferrante. Três meses em Timerman. Olga, casada, dois filhos. Mirela, solteira. Uma, descobre que o ex-marido a trocou por uma mulher mais jovem. A outra, não sabe nada do seu ex-companheiro. 

Se apontar semelhanças é inevitável, pontuar diferenças é fundamental. Principalmente porque, enquanto o romance de Ferrante, publicado no início dos anos 2000, era espelho de uma sociedade fundamentalmente analógica, a trama de Timerman se desenrola em um cenário que é igualmente físico e virtual. Olga, em Dias de Abandono, não pode seguir os rastros do ex-marido a menos que saia de casa e intercepte suas andanças e encontros. Mirela, por outro lado, tem ao seu dispor uma infinidade de ferramentas virtuais, redes sociais, buscas automáticas e perfis falsos que são utilizados todo o tempo nessa espécie de caça. O agravante: enquanto Olga cumpria de forma mais ou menos estável seu luto de perda, Mirela encontra formas de, todos os dias, reviver sua dor. 

E é nessa diferença fundamental que reside parte importante da força de Copo Vazio. A personagem de Timerman poderia ser qualquer mulher de 2021. Suas dores, seu desespero incapacitante e sua busca furiosa por pistas virtuais são elementos de identificação por qualquer pessoa que, na última década, levou um pé na bunda e sofreu por amor. Perfis fechados no Facebook, tiques duplos do WhatsApp e fotos de viagem no Instagram são parte de nossa realidade e constituem nova forma de experimentar emoções, sejam elas de contentamento, angústia ou depressão. 

A experiência médica de Timerman como psiquiatra provavelmente forneceu material valioso para a trajetória de desconstrução emocional de Mirela. A autora também trabalhou, durante quase uma década, em um hospital penitenciário. Sobre esse período, disse recentemente em entrevista à revista Cult: “Pode-se pensar que ali só se sofre pela privação de liberdade, ou pela pobreza, pela injustiça, pelo racismo, pelas condições da prisão, mas ali também se sofre por amor. Parece óbvio, mas não é.” 

E se a busca errática de Mirela no ambiente virtual é um dos fios condutores de uma narrativa que se desenrola, em boa parte, no campo das redes sociais, o sofrimento da protagonista é físico e carnal. Em um dos capítulos, Mirela consegue entrar no apartamento do ex, invade seu quarto vazio, analisa objetos e composições que contam a história de uma vida, “toca na toalha seca e sai.” A atenção da autora a detalhes que ajudam a corporificar a dor da perda é admirável. 

Como Ferrante, Timerman atinge momentos de plena poesia imagética, sobretudo quando desloca a protagonista do tempo em que acontece o trauma para o futuro em que este já estaria superado. “Porque o medo de sentir já é sentir, e talvez agora não precise mais de Pedro para tê-lo dentro de si”, escreve. Pouco depois, presta “uma homenagem ao que não aconteceu, os nãos todos, ladrilhos do meu caminho, os nãos que plantam sementes.”

Se em Ferrante o desespero do abandono segue um trajeto físico que é historicamente conhecido, experienciado por mulheres e homens há centenas de anos, em Timerman há a sugestão de que o processo para a superação do trauma pode estar no que se acessa a partir das telas. Uma sugestão, não passa disso. No final das contas, a dor da perda cobra seu preço em carne, osso e sangue.

Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. É mestrando em Estudos da Tradução pela UFC e curador da Festa Literária do Ceará (Flac). Está no Instragam e Twitter.

Serviço
Copo vazio

de Natalia Timerman
144 páginas
Editora Todavia
R$ 49,60
Clique para ver

Dias de abandono
de Elena Ferrante
184 páginas
Editora Biblioteca Azul
R$ 44,90
Clique para ver

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.