Bemdito

A reforma tributária no país dos bacharéis

Contrários à tributação de lucros e dividendos, advogados prejudicam busca por sistema mais equitativo e eficiente
POR Thiago Álvares Feital
Foto: Mathieu Stern

Três dias após o governo federal encaminhar ao Congresso proposta de tributação de lucros e dividendos — uma medida há muito necessária para corrigir as distorções do sistema tributário brasileiro —, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) publicou nota se manifestando contrariamente à proposta. 

Segundo a Ordem, a tributação de dividendos levará a “[…] um aumento brutal de carga tributária, que pode representar o golpe de misericórdia às milhares de sociedades  uniprofissionais  que  hoje  lutam  pela  sobrevivência e  que  já  se submetem a uma das alíquotas de tributação sobre a renda mais altas do mundo.”

Como solução, a entidade propõe “[…] que a revogação da isenção de dividendos deveria ser excepcionada para os profissionais liberais organizados em forma de pessoa jurídica, que já sofrem com a carga tributária do IRPJ, CSLL, PIS/COFINS e ISS.” O argumento causa perplexidade.

Na perspectiva política, a proposta parece ignorar todo o debate sobre justiça fiscal que se desenrolou na última década. A criação de um sistema tributário progressivo e justo e o combate aos privilégios fiscais deveriam ser uma pauta encampada pela OAB, tendo em vista a relevância constitucional da entidade e os princípios que orientam a sua atuação. Chama atenção o fato de o texto empregar uma única vez a expressão justiça fiscal e, ainda assim, apenas para afirmar que a proposta foi apresentada “sob a falsa bandeira de justiça fiscal”.

A proposta também surpreende pela ousadia e pela franqueza com que abraça a inconstitucionalidade. A criação de tratamento tributário diferenciado entre contribuintes em função da ocupação profissional é literalmente vedada pela Constituição em vigor.

Com base no princípio da isonomia tributária, o STF já declarou inconstitucional a lei que isentava o ICMS na aquisição de veículos por oficiais de justiça, a lei que isentava os membros do Ministério Público do pagamento de custas judiciais, e ainda a lei que concedia isenção de IPTU a servidor municipal. Como seria possível então considerar constitucional a isenção da tributação de lucros e dividendos para profissionais liberais como pretende a OAB?

Também é curioso que a nota não argumente acerca da isenção de R$ 20 mil por mês para lucros e dividendos distribuídos por microempresas e empresas de pequeno porte. A medida, ainda que criticável, parece suficiente para atender às sociedades  uniprofissionais  que, segundo a OAB, “hoje lutam pela  sobrevivência.” 

Apesar de causarem perplexidade, não é difícil compreender as razões da entidade, que, no ano passado, já tinha dito que iria “à guerra contra a reforma tributária” do governo. A resistência da OAB deve ser compreendida em seu contexto. Advogados estão entre os grandes beneficiários da isenção sobre lucros e dividendos.

Os advogados e o conservadorismo


Segundo dados da Receita Federal, em 2018, os advogados receberam 30,2 bilhões em rendimentos isentos, ficando atrás apenas dos médicos (50 bilhões) e dos dirigentes de empresas (265,6 bilhões). Em proporção dos rendimentos totais, advogados são os que mais se beneficiam da isenção, com 76% dos rendimentos isentos.

Se, de modo geral, podemos dizer que o campo jurídico é conservador, especificamente em matéria tributária — onde as teorias jurídicas se comunicam com ideologias econômicas —, esse conservadorismo se converte em uma evidente inclinação dos tributaristas ao neoliberalismo, o que explicaria a reticência do campo com o conceito de justiça fiscal e com toda a agenda que ele mobiliza. 

A nota deixa em aberto ainda outras questões: se a medida é tão injusta, por que a OAB se limita a propor a exclusão dos profissionais liberais sem maiores argumentos acerca dos seus impactos sobre a parcela da classe média que não tem título de bacharel? Se a preocupação é com as sociedades unipessoais, por que não pleitear o aumento do patamar de isenção? Ou, ainda, porque não demandar que a tributação dos dividendos seja progressiva? Isso permitiria diferenciar as sociedades unipessoais que hoje “lutam  pela  sobrevivência” daquelas grandes bancas que viram o seu faturamento aumentar na pandemia

A reforma tributária que o governo agora resolve impulsionar é insuficiente. É preciso voltar a discutir a tributação do consumo, cujos debates foram abandonados pelo Legislativo, e reformar a tributação do capital e do patrimônio. Em suma, tributar (mais) os mais ricos. Isto não significa que a proposta de tributar lucros e dividendos não seja meritória, mas, sim, que é preciso aperfeiçoá-la e ir além

As críticas e comentários ao projeto, que já se avolumam, são necessários para aprimorar a proposta. Mas em um debate republicano, os sujeitos que se propõem a intervir devem observar uma premissa fundamental: merece apoio a proposta de reforma que caminhe para a construção de um sistema tributário equitativo e eficiente e, para isso, é necessário extirpar e não criar novos privilégios. Foi justamente a defesa dos privilégios e das exceções —  interesses privados e setoriais disfarçados de interesse público — que fez do sistema tributário uma colcha de retalhos. 

Este “manicômio tributário” — expressão que os advogados tributaristas gostam de empregar — prejudica especialmente os mais pobres: aqueles que não têm órgãos de classe para defender seus interesses.

Thiago Álvares Feital

É advogado, professor, doutorando e mestre em direito pela UFMG. Pesquisa tributação, desigualdade, gênero e direitos humanos.