Bemdito

A miragem da terceira via

Por que a revelação sobre a sexualidade de Eduardo Leite foi estratégica para reanimar o debate sobre a terceira via e por que ela é, ainda, nada mais do que uma miragem
POR Juliana Diniz
Foto: Felipe Dalla Valle/Palácio Piratini

O charme e a beleza podem ser um capital político considerável, embora essa constatação costume ser lembrada apenas quando analisamos a performance das mulheres. As mais espinhosas revelações são suavizadas quando associadas a um rosto bonito e ditas no tom de voz certo. Quando acompanhadas de uma boa figura, essas revelações difíceis ajudam a humanizá-las, envolvendo a imagem pública de um deputado, um prefeito ou um ministro numa aura de fragilidade que a beleza torna atraente e cativante. 

É sempre mais fácil se deixar convencer por um rosto bonito: por isso uma campanha eleitoral não se faz sem maquiadores e cabeleireiros. Um pleito é primordialmente sobre afetos, eu diria, e as razões vêm como acessório de segunda ordem no imaginário coletivo. Collor que o diga.

Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, eleito pelo PSDB, virou notícia no último final de semana quando, em entrevista a Pedro Bial, na Rede Globo, abriu o jogo sobre sua sexualidade. “Sou um governador gay, e não um gay governador”. Foi uma declaração honesta, desarmada e amorosa. Com expressão calma, o governador, um homem muito bonito e sempre tão alinhado, falou, com a voz pausada e cálida, com carinho de seu companheiro, derramando-se em admiração arrebatada.

Como muitos, fiquei comovida, seduzida pela cena de um político psdbista se derretendo de amores por seu namorado em rede nacional. Nascia um aliado ao progressismo em meio aos destroços de um partido que embarcou de mala e cuia no projeto político mais homofóbico da história brasileira?

Por toda sua composição e pelos elementos mais sutis, a manifestação do governador foi poderosa – a prova é que, tão logo a informação passou a ser difundida, o nome de Leite circulou aqui e ali como um possível candidato a rosto da tão sonhada terceira via, embora ele tenha jurado, de pé juntos, em entrevista à revista Piauí, que não houve cálculo eleitoral no episódio.

No cenário de faroeste em que vivemos, sabemos que não podemos nos dar ao luxo de ser ingênuos. Em política e no marketing eleitoral, timing é tudo. Tão logo se tornou pública a informação, Leite recebeu apoio de nomes de diferentes posições no espectro político e, como tudo, o entusiasmo também pode ser interpretado.

Ao analisarmos os desdobramentos da entrevista, entendemos melhor algumas das razões de tanto acolhimento: Eduardo é homem, branco, bonito, psdbista, ex-aliado de Jair Bolsonaro e governador de um estado conservador nos costumes. Por todos esses atributos (e não pela originalidade), sua declaração foi recebida com a ênfase que foi. Afinal de contas, não custa lembrar que Fátima Bezerra, a governadora do Rio Grande do Norte, mulher, lésbica e petista, nunca teve a graça dos confetes e das manifestações de carinho de seus colegas políticos. 

Por ser um perfeito exemplar de político de centro-direita amansado pela moderação no tom e por sua imagem tão bem cuidada, Eduardo Leite surgiu como um candidato perfeito para personificar uma terceira via que convém ao seu partido: uma visão de estado e economia em tudo fiel ao liberalismo econômico que tanto encanta a direita brasileira, só que atenuada, mais colorida e afável, graças à bela aparência de tolerância à diversidade de costumes. 

A necessária renovação

Sem desmerecer a importância da representatividade para a construção de uma política mais plural e menos homofóbica, devo dizer que a entrevista de Eduardo Leite e sua declaração contribuem muito pouco para viabilizar uma terceira via digna do nome.

Para que uma alternativa aconteça, é indispensável que ela nasça de uma renovação de pautas e propostas, de um novo consenso, de uma nova composição de forças. Nada disso é visível nas movimentações alimentadas pelo PSDB, um partido fragmentado e ainda ocupado em resolver suas pendências internas.

Talvez devêssemos prestar atenção nos movimentos mais discretos, menos midiáticos e mais precisos de um outro ator político – Gilberto Kassab. Se alguma terceira via surgir, é provável que saia do balaio do PSD e das composições improváveis que surgem de sua pragmática (ainda que menos bela) costura.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.