Bemdito

Um país em luto e um presidente em campanha

O custo de termos um governo que não governa e um presidente que prefere se ocupar permanentemente em fazer campanha eleitoral
POR Monalisa Torres
Foto: Alan Santos/PR

Dedico este artigo a todas e todos aqueles que tiveram sua vida abreviada pela Covid-19. Minha solidariedade às famílias enlutadas.

Estimado(a) leitor(a), peço licença para me permitir utilizar este espaço para uma pequena reflexão e um desabafo, muito mais que uma análise política.

No último sábado, 19 de junho, o Brasil atingiu a triste marca de meio milhão de vidas perdidas pela Covid-19. Nessa mesma data, milhares de brasileiros foram às ruas em 25 capitais e no Distrito Federal criticar um governo que, desde os primeiros registros de mortes pelo novo coronavírus no país, fez pouco caso da pandemia.

É bastante simbólico que muitos daqueles que tanto defendem a “necessidade de ficar em casa” tenham chegado à conclusão de que “o presidente é mais perigoso que o vírus”.

Como chegamos até aqui? Tentarei recuperar alguns elementos que ajudam a entender a dimensão do nosso drama.

No Brasil, as primeiras mortes pelo novo coronavírus foram registradas em 17 de março de 2020. Em 24 de março, em pronunciamento oficial, o presidente menosprezou a pandemia, chamando-a de “gripezinha”; condenou os governadores por seguirem as orientações da OMS; e sugeriu o uso de cloroquina como “tratamento precoce” contra a doença. 

E mais, desestimulou o uso de máscaras de proteção individual, lançou dúvidas sobre as vacinas e encorajou manifestações de rua – que promoveram aglomerações num momento em que todas as agências de saúde recomendavam que as pessoas ficassem em casa.

A defesa vociferada de um equivocado “tratamento precoce” e a tese de imunidade de rebanho foram as diretrizes da política bolsonarista. Como justificativa, afirmava que o Brasil não podia parar, que a “economia não podia parar” e que a fome (pela falta de trabalho) seria mais danosa do que a própria pandemia. Tese comprada por muitos parlamentares bolsonaristas, como já apontada nessa coluna.

Enquanto chefes de Estado do mundo todo coordenavam ações de enfrentamento à pandemia em diferentes frentes (medidas de isolamento social, testagem em massa, socorro financeiro, acordos para aquisição de imunizantes, etc.), o presidente brasileiro pareceu mais preocupado em produzir fatos alternativos que alimente sua base de apoiadores . Ou ainda, criar polêmicas, sobretudo aquelas que reforçassem seu antagonismo em relação aos governadores – a quem coube a tarefa de enfrentamento à pandemia.

Como se as medidas de proteção à saúde coletiva e às de socorro econômico fossem irreconciliáveis, o presidente alimentou uma dicotomia artificial sintetizada na oposição “vida versus trabalho”.

Desemprego, inflação e auxílio emergencial

Aliás, do ponto de vista econômico, o país está estagnado. A demora na retomada segura das atividades (decorrente da letargia na imunização da população) e a previsão de “volta à normalidade” são questões ainda a serem respondidas.

O crescimento econômico apontado pelo presidente, no pronunciamento oficial de 2 de junho, não é sustentável. Sem contar o desemprego recorde e a alta na inflação (que corrói a renda do trabalhador), que colocaram o Brasil na segunda pior posição no índice de mal-estar social, segundo pesquisa realizada por Daniel Duque (FGV) e divulgada pelo O Globo, no último 21 de junho.

Mais recentemente, tomamos conhecimento, através da CPI da Covid, que o governo federal ignorou pelo menos 101 e-mails da Pfizer para a negociação de imunizantes. Isso diz muito sobre as prioridades do presidente.

Não custa lembrar que as ações mais importantes de combate a Covid-19 foram tomadas muito mais por iniciativa/pressão de outros poderes, a exemplo do Auxílio Emergencial, proposto pelo Congresso Nacional e do Plano Nacional de Imunização (PNI), somente apresentado após pressão de governadores e do STF – e, ainda assim, cheio de lacunas e imprecisões, escancarando a falta de planejamento do governo federal.

À medida que o Brasil batia recordes diários de mortes por Covid-19, a preocupação do senhor presidente parecia ser a de manter sua base de apoiadores. Não à toa, sua frequente participação em eventos que, pelo potencial/apelo eleitoreiro, pareciam dominar sua agenda.

Os exemplos são muitos, mas me limitarei a um: a visita de Bolsonaro ao Ceará em 26 de fevereiro de 2021. Na agenda oficial, constava a assinatura de uma ordem de serviço para a retomada de obras viárias no estado. O evento sequer tratava-se de uma inauguração, mas o registro que ficou foi de um presidente passeando em carro aberto, desfilando sem máscaras, promovendo aglomerações e criticando medidas de isolamento social no momento em que o Ceará registrava recrudescimento no número de casos e vítimas por Covid-19.  

Em meio à maior crise humanitária da história do Brasil, celebrar acordo de compra de imunizantes, inaugurar hospitais de campanha ou chamar outros poderes da República para, juntos, encontrarem alternativas, não parecem atrativos para o presidente, que prefere dedicar seu tempo à autopromoção na Internet e/ou a participar de motociatas.

E isso, caros(as) leitores(as), não se assemelha a uma campanha eleitoral antecipada?

A propósito, a última “grande motociata” reuniu pouco mais de 6 mil motos, o que corresponde ao número de mortes por Covid-19 em três dias, se considerarmos a média móvel de óbitos no país.

Qual é o custo que o Brasil paga por essas escolhas equivocadas do excelentíssimo senhor presidente?

Meio milhão de vidas perdidas para a Covid-19.

Este é um governo que não governa. Prefere se ocupar em fazer campanha (permanentemente). A reeleição parece realmente mais importante que uma “gripezinha”.

E, a despeito do drama humanitário que vivemos, Bolsonaro ainda pode ser reeleito em 2022, como pontuado em excelente análise de Monalisa Soares.

Caro(a) leitor(a), espero, sinceramente, que em 2022 você esteja vivo(a), bem e vacinado(a) e que se lembre das escolhas e prioridades do excelentíssimo senhor presidente.

Monalisa Torres

Doutora em Sociologia pela UFC e analista em jornais, integra o projeto "Governos estaduais e as ações de enfrentamento à Covid-19 no país", organizado pela Associação Brasileira de Ciência Política e o jornal O Estado de S. Paulo.