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É proibido mentir, mas se quiser pode

Sentindo-se frustrado com os rumos da CPI da Pandemia? Existem explicações para o cheiro de pizza que começamos a sentir
POR Juliana Diniz
Fernando Frazão/Agencia Brasil

Sentindo-se frustrado com os rumos da CPI da Pandemia? Existem explicações para o cheiro de pizza que começamos a sentir

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

É só isso mesmo?

Talvez tenha sido essa a sensação que você sentiu, à la Gil do Vigor, depois de acompanhar os dois dias de depoimento do general Eduardo Pazuello na CPI da Pandemia na semana passada. 

A ansiedade pela participação do ex-ministro vinha ganhando corpo desde que o militar, numa desculpa esfarrapada, informou que não poderia comparecer na data prevista inicialmente, logo após a participação de Nelson Teich.

Muitos – e me incluo nessa lista – esperavam que o atraso fosse render uma inquirição bem preparada dos senadores, afinal de contas, assim como Pazuello, os parlamentares teriam mais tempo para se municiar de documentos, provas de fatos e de negligência. Acreditei que os soldados da oposição seriam implacáveis e que o governo sairia debilitado do depoimento. Mais uma vez, subestimamos Bolsonaro.

Nada disso aconteceu. O episódio se deu sem maiores dificuldades e, dias depois, vimos o presidente da República dobrar a aposta do deboche levando um general da ativa a subir num palanque e participar de mais aglomeração oficial na pandemia. Bolsonaro riu e chamou o general de “meu gordinho”. Tripudiou. Partiu para a posse do presidente do Equador em voo oficial, ainda vestido com a jaqueta horrenda dos Guerreiros de Aço.

Nas imagens da motociata, Pazuello sorria, sem máscara, quase triunfante. Amargamos mais um domingo queixosos no Twitter. E os senadores foram à Globo News com cara de tacho.

Tudo, ou quase tudo, pode ser compreendido quando visto em retrospectiva, e é sempre de alguma utilidade entender as causas mais profundas da nossa frustração.

A primeira causa a explicar o resultado que vimos no domingo, pós-depoimento, foi a estratégia do governo e do ex-ministro. Ao impetrar o pedido de habeas corpus, pedindo que o Supremo Tribunal Federal assegurasse o seu direito ao silêncio, Pazuello blefou. Deu a entender que não responderia às perguntas e que ofereceria de bandeja aos parlamentares uma ótima oportunidade para a oposição explorar a narrativa do silêncio como confissão de culpa. Foi uma pegadinha, para a qual o ministro do STF Ricardo Lewandowski colaborou involuntariamente.

Pazuello não só respondeu a tudo, como exibiu em boa forma toda a truculência arrogante que sempre caracterizou suas manifestações públicas. Como praticamente todos os senadores interessados em inquirir pareciam não acreditar que ouviriam respostas, foram mal preparados e se mostraram incapazes de reagir prontamente às afirmações contraditórias, inverídicas ou claudicantes do ex-ministro. Já no primeiro dia de inquirição, o relator Renan Calheiros (MDB-AL) abusou da paciência de todos com suas perguntas pouco assertivas e pouco reativas, o que ajudou a cansar seus colegas que perguntariam depois e dispersar a atenção da audiência.

Essa constatação nos leva ao segundo ponto que precisamos considerar.

Para que uma comissão parlamentar de inquérito seja capaz de incomodar, fazer sangrar, pressionar e demolir, ela precisa equilibrar o espetáculo e a objetividade investigativa. Quando vira apenas vitrine para vaidades pessoais e para o lançamento precoce de campanhas, perde a credibilidade social e, consequentemente, o seu poder de fogo – o resultado político se fragmenta na percepção da sociedade de que o interesse de todos ali não é o ato de investigar, mas a autopromoção. A principal vítima é o próprio Parlamento, a sensação geral de que ali dentro é tudo teatro, finalizado com um grande acordo e uma bela pizza.

Por isso, os parlamentares que têm interesse em conter o governo não devem perder de vista que são, ali, antes de tudo, inquiridores e investigadores. Uma atividade que exige preparo, sangue frio e técnica.

Como tudo que aconteceu durante a pandemia é muito público, fartamente registrado, é imperdoável que os parlamentares não cheguem ao dia do depoimento com arquivos e arquivos bem organizados de documentos e informações que possam ser prontamente apontados para confrontar o depoente.

Quando alguém é levado para depor, o objetivo há de ser sempre trazer informações úteis para complementar lacunas sobre os fatos ou evidenciar, pela confissão, contradição ou erro, o estado de culpa. É assim que a testemunha passa à condição de investigado, e um depoimento pode levar o Parlamento a colaborar para responsabilização futura na esfera criminal.

Nada disso é possível quando os parlamentares chegam sem munição à cena do jogo, e se perdem em perguntas mal formuladas ou apagadas em meio a discursos indignados feitos para passar no Jornal Nacional.

É pela boa capacidade técnica de inquirir que senadores como Alessandro Vieira (Cidadania-SE) chamam atenção. Suas perguntas são firmes, resolutas, lançadas a queima-roupa. Ele não permite que o depoente divague. Trata o inquirido com uma polidez fria, que o deixa desconfortável e, por isso, mais suscetível a revelar. Deve muito à sua experiência como delegado e à sua inteligência, sem dúvida. Sua postura de inquiridor difere muito do paternalismo bonachão – e pouco convincente – do presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), que será um dos principais responsáveis pela sensação de oportunidade perdida. 

Randolfe Rodrigues (Rede-AP), no seu estilo próprio, também tem bons momentos. Com Pazuello, usou a tática da velocidade. Não deixava o depoente pensar nas respostas, repetindo as perguntas uma após a outra até que o general ficasse desorientado e revelasse a informação desejada. Os senadores deveriam se aproveitar melhor do desconforto – muitas vezes, os parlamentares simplesmente deixam o depoente respirar enquanto decidem morder uma provocação infantil de arruaceiros como senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). É tão fácil assim desestabilizar os investigadores? Por muito pouco já foram suspensas sessões que prometiam esquentar a temperatura do depoimento.

As boas performances de alguns nos ajudam a pensar no que a CPI da Pandemia poderia ser – um grupo com composição mais enxuta, otimizado pela quantidade menor de inquiridores (escolhidos estrategicamente pelo grupo), e muita disposição de se fazer respeitar.

Digo isso porque a decisão leniente de Omar Aziz de permitir a mentira, durante o depoimento de Fabio Wajngarten, pode ter colocado toda a autoridade da comissão a perder. Se a mentira do depoente é tolerada sem pudores e sem consequências, a farsa toma o lugar da investigação e acabamos, mais uma vez, nos frustrando ao perceber que a instituição não é capaz de ser mais forte do que os homens que a fazem.

O resultado da tolerância? Já sabemos. Motociata, ameaça a democracia, deboche, vacinação lenta, Forças Armadas emparedadas, Polícia Federal desmoralizada (cadê o celular do ministro?), perda de foco (já foi anunciada a intenção de trazer uma dezena de governadores e prefeitos para o circo) e, no fim, o Brasil um pouco menor depois de tudo isso.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.