Bemdito

Pobres não leem livros?

A proposta de taxar livros e periódicos dificulta o acesso à cultura e torna o Estado mais poderoso para definir o que poderemos ler
POR Juliana Diniz

A proposta de taxar livros e periódicos dificulta o acesso à cultura e torna o Estado mais poderoso para definir o que poderemos ler

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

O Governo Federal e seu Ministério da Economia estão mesmo dispostos a tributar livros, periódicos e o papel necessário para sua impressão. O argumento da equipe econômica é o de que, “de acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019 (POF), famílias com renda de até 2 salários mínimos não consomem livros não-didáticos e a maior parte desses livros é consumido pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos. Neste sentido, dada a escassez dos recursos públicos, a tributação dos livros permitirá que o dinheiro arrecadado possa ser objetivo de políticas focalizadas”. Ou seja, ricos são os consumidores de livros e, portanto, é legítimo que sejam responsáveis por arcar com um custo tributário maior para financiar políticas de amparo social. 

Poderíamos facilmente refutar esse argumento afirmando que, se os livros se tornarem ainda mais caros, serão cada vez mais restritos às classes sociais economicamente mais favorecidas. A questão, contudo, vai muito além.

Peço ao leitor um pouco de fôlego e alguma paciência para acompanhar um breve fio de explicações tributárias. É importante para que se possa entender com clareza por que a taxação dos livros e periódicos é uma tragédia por aprofundar a desigualdade de acesso à educação e cultura e pelo que representa de risco à liberdade de imprensa e, consequentemente, à democracia. 

 O tema voltou à pauta durante a semana graças à publicação de um documento pela Receita Federal chamado “Perguntas e Respostas – Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS)”. A CBS é uma nova contribuição imaginada pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, para cobrir o rombo nas contas públicas e ampliar a arrecadação. Ainda não foi aprovado e integra os complexos e tortuosos debates sobre a reforma tributária sonhada pela pasta da Economia.

A Contribuição sobre Bens e Serviços foi pensada para substituir a dupla PIS/COFINS, fundindo-as numa única contribuição. O PIS é a sigla para Programa de Integração Social, e a COFINS é a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social. As duas incidem sobre a receita bruta das empresas e têm por finalidade financiar despesas nas áreas da saúde, previdência e assistência social.

O tema preocupa trabalhadores e empregadores por diferentes motivos. Na prática, de um lado, a redução do que é arrecadado com PIS/COFINS é péssimo para o trabalhador porque se trata de um recurso vinculado ao custeio de políticas públicas de amparo social; do outro, o aumento de sua alíquota em uma nova contribuição pode representar o incremento de uma já muito pesada carga tributária sobre as empresas. 

Contribuições são espécies tributárias diferentes dos impostos, e esse detalhe é importante para se entender a sutileza da discussão jurídica que envolve o tema. Entre outras distinções, as contribuições diferem dos impostos porque sua receita é voltada ao financiamento de uma despesa específica e, por isso, são potentes mecanismos de integração entre política tributária e programas de ação social de um governo. No caso dos impostos, a receita decorrente de sua arrecadação vai integrar o orçamento geral do poder público, onde será alocada em diferentes rubricas, nem sempre inteiramente controláveis pelo Poder Executivo (para entender mais sobre esse assunto, basta ler o texto de Wanderley Neves aqui).

De acordo com a Constituição Federal, em seu artigo 150, inciso VI, alínea d, é vedado a União, Estados e Municípios instituir impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão”. Se interpretarmos o artigo em sua literalidade, parece claro que a imunidade se limita aos impostos, não alcançando as outras modalidades de tributos, como as contribuições, cujo exemplo é o PIS/COFINS. Afinal, quis mesmo a Constituição se limitar aos impostos?

A Lei 10.865/2004, que modificou o regime da PIS/COFINS, buscou driblar essa dúvida, ao isentar da contribuição os livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão. Foi assim que, durante anos, evitamos debater a amplitude da imunidade tributária desses produtos.

Como a disposição de fazer valer a literalidade do artigo 150 da Constituição agora existe, a fim de ampliar o potencial de arrecadação de um novo tributo e alcançar o mercado editorial, a dúvida se impõe: afinal, a imunidade prevista na carta constitucional também deve ir além dos impostos e alcançar as contribuições como a CBS? 

O professor de Direito Tributário da UFC, Hugo de Brito Machado Segundo, explicou em um ótimo artigo publicado no Conjur no ano passado todas as nuances da questão. Vale a pena repassar os seus argumentos.

Para muitos tributaristas, como é o caso de Machado Segundo, a interpretação literal do artigo 150, que dispõe sobre as imunidades, violaria o objetivo do constituinte, que é proteger o mercado editorial contra a manipulação política e a censura através da política tributária. O mais coerente com a intenção da Constituição, portanto, seria interpretar a imunidade de livros e periódicos de forma ampla, aplicável não só aos impostos, mas também às contribuições.

Invocando a explicação de outro jurista, Aliomar Baleeiro, Machado Segundo relembra a história dessa regra: ela não existe apenas para baratear livros e estimular a leitura, existe também para evitar que se utilize a sobretaxação do papel como forma de inviabilizar o funcionamento de veículos de imprensa e editoras. 

Falando de um modo bem simples: se o papel, um produto importado, ficar caro demais para se comprar, é bem provável que os jornais tenham dificuldade de manter as contas em dia ou que os livros indesejados sejam publicados a um preço que um consumidor como eu e você possa pagar. Isso significa, querido leitor, que a criação de uma zona livre de tributos para os livros, jornais e periódicos que lemos para nos informar é uma forma que o legislador encontra de evitar a censura, a perseguição política e a sabotagem à democracia pelas vias burocráticas da política tributária. Como brinde, a imunidade torna os livros mais baratos e, por isso, mais acessíveis, especialmente quando conjugados a políticas educacionais e culturais inteligentes.

É por tudo isso que a proposta do governo de tributar os livros, periódicos e o papel destinado à sua impressão é tão ruim. Ela torna o acesso à cultura ainda mais elitizado e pode ser utilizada como arma política para promover uma agonia de veículos de comunicação e editoras. Essa agonia deixará o espaço livre para que o Estado escolha os livros que deseja comprar para distribuir aos mais pobres. Livros que pessoas como Damares Alves e Abraham Weintraub irão selecionar.

A taxação também desestimulará o investimento de empresas no mercado editorial brasileiro e, assim, investirá o Estado de um poder imenso sobre aquilo que nós (e nossos filhos) iremos ler. É por essas e outras razões que mesmo um tema só aparentemente técnico como a reforma tributária não está dissociado de ideologia. Toda técnica obedece a um fim, e os fins são sempre políticos. Um novo tributo nunca é só um valor a arrecadar para um cofre, ele pode representar uma arma para cercear liberdade e restringir nosso direito de viver em uma democracia.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.