Bemdito

Dos escombros, só restou a palavra

Como a contemplação do belo, em tempos de barbárie, pode nos fazer suportar o minuto seguinte desta temporada no inferno
POR Camille C. Branco
Foto: AP Photo

Como a contemplação do belo, em tempos de barbárie, pode nos fazer suportar o minuto seguinte desta temporada no inferno

Camille Castelo Branco
camillecastelobranco@gmail.com

Sempre achei sinal de sorte ver um casal se beijando na rua, atrapalhando o trânsito dos passantes. Os corpos aproximados parecem criar, por um instante, um campo gravitacional próprio de desejo derramado, que costuma gerar olhares de reprovação daqueles que pensam ser a paixão um material encaixável em arreios, vexaminoso. Uma pequena rebeldia urbana, vontade incontida do outro, da outra. Me arrancava um sorriso, quando presenciava.

Talvez por esse motivo tenha ficado tão siderada quando vi, pela primeira vez, uma fotografia de O beijo, escultura de Rodin. Por pouco não sou acometida pela impressão de que o mármore se movimentará, convertido em carne. O casal esculpido pelo artista não beija só com os lábios, mas com as pernas, os braços, um entrelaçamento que suspende o tempo e nos dá a impressão, como observadores, de invasão e voyeurismo. Fora deste beijo, nada existe. E hoje, num momento em que, se sabemos o que é bom pra nós, circulamos nas ruas usando máscaras, um beijo como o imaginado por Rodin é uma impossibilidade. A pandemia impede a subversão contida em tocar, com um corpo, outro corpo. Porque isto pode nos matar. É algo que me deixa profundamente triste.

Como continuar amando em tempos de isolamento social? O que sobra do amor, sem o gesto amoroso? Barthes deixou o palpite: sobra o discurso. Varada por uma saudade profunda, alguns pequenos fotogramas de comunicação me voltam até a mente. Um amigo muito querido me pedindo para ler poemas para ele por áudio, porque isto o acalmava antes de dormir. Outro amigo muito querido me dizendo “Camille, eu sinto muita saudade de ti, essa comunicação virtual é muito ruim”. Ele relembra nosso último Carnaval dançando juntos, eu coberta de tule e purpurina e diz “Nós éramos felizes e sabíamos”. Minha analista, a quem agora só vejo por uma tela de celular, recorda nosso último encontro presencial, no dia do meu aniversário, eu entrando na sala amanhecida, a maquiagem um pouco desfeita, porque comemorava no dia anterior.

São insuficiências. O calor humano é insubstituível. Mas as palavras são o que me faz suportar não o dia, mas o minuto seguinte desta longa temporada no inferno. Na última semana, tenho me perguntado – como, creio eu, ainda me perguntarei muitas vezes – se faz sentido escrever sobre literatura para o público, considerando as notícias recentes: Mais de quatro mil mortes por Covid no Brasil em um único dia; mais da metade da população brasileira sem garantia de comida na mesa. É o tempo do trauma, da morte, da barbárie. Falar de arte em um tempo assim não é insensível e, além de tudo, inútil? Há possibilidade de contemplação do belo agora?

Buscando pistas sobre a resposta, relembro da advertência de Hemingway de que as pessoas ao nosso lado nas trincheiras importam mais do que a própria guerra. Estendo as mãos, aturdida tateando no escuro, para o exemplar do livro de um escritor e amigo que sempre esteve ao meu lado na guerra, o Felipe Cruz. Em Você nunca fez nada errado, publicado pela editora Monomito, Felipe reflete sobre o momento em que descobriu ser soropositivo e sobre como encarou esta descoberta como um castigo e uma condenação. Felipe estava diante de sua versão pessoal do pior e contou sobre isto em um livro. Folheando as páginas que conheci ainda no original, localizo um trecho que eu mesma sublinhei. Felipe me conta: “Eu escrevi porque, francamente, eu não sabia mais o que fazer.”.

Também não sei mais o que fazer. Então continuo escrevendo. Continuo lendo. Continuo falando ao telefone. Continuo fazendo videochamadas. Por vezes, minhas palavras se esgotam e perco a fé na linguagem. Fico pessimista, silencio, acho uma batalha perdida, tenho vontade de nunca mais escrever uma vírgula. Mas acabo voltando. Ontem, enquanto pensava sobre esta coluna antes de dormir, chequei as mensagens do celular. Eram duas da madrugada. Havia uma pergunta, feita pela minha tia: “Minha filha, qual era o livro preferido do papai? Esqueci”. Meu avô morreu há oito anos. E, duas da manhã, minha tia tenta se lembrar de seu livro favorito, para melhor manter preservada a lembrança dele. Respondo que era Cem anos de solidão. E, por enquanto, este nó entre a saudade do meu avô morto e o livro do qual ele mais gostava… Por enquanto, este nó responde minha dúvida sobre se a literatura serve de algo diante da morte.

Camille C. Branco é antropóloga, pesquisadora e pode ser encontrada no Instagram.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.