Bemdito

A aceitação é uma substância poderosa

Recém-lançada pela Pixar, a animação Turning Red tem mais afinidades com a performance burlesca do que você poderia imaginar
POR Camille C. Branco

Disney e Pixar lançaram, recentemente, sua versão para crianças da história kafkiana paradigmática. Trata-se da animação Turning Red, na qual acompanhamos a jornada de amadurecimento da adolescente sino-canadense Mei Mei. Ao invés de lidarmos com as angústias de Gregor Samsa, um clássico da mitologia de Kafka – o protagonista de A Metamorfose um dia acorda convertido em um gigantesco inseto – nos é entregue a conversão de uma menina estudiosa, obediente e aplicada… Em um gigantesco panda vermelho.

Mais otimista e menos sombria do que a história em língua alemã, a versão infantil contemporânea não deixa de ser dramática. A dor de crescer vem acompanhada da necessidade de uma ruptura, ainda que parcial, com o controle e conservadorismo dos pais de Mei Mei, em especial de sua mãe.

Ao contrário de Samsa, que precisa, ao longo de todo o romance, enfrentar o espanto, a repugnância e a violência de sua família em relação ao novo corpo, Mei Mei aprende a controlar seu monstro – assim como no livro, o filme nos conduz a questionar quem é o monstro realmente – e transitar entre ele e a forma humana a partir de um delicado e, ao mesmo tempo, resistente vínculo emocional: a aceitação de suas melhores amigas de colégio.

Quando as meninas que a protagonista tanto ama a veem como panda vermelho e não a consideram assustadora ou deformada e sim interessante e adorável, Mei Mei consegue, ao mesmo tempo, manter uma relação mais funcional com esta parte de si mesma e também, mais lentamente, a apreciá-la. 

Aceitação e amor são afetos muito semelhantes, embora, não raro, pessoas aleguem não nos aceitarem justamente por nos amarem. No entanto, creio que o vínculo amoroso mais profundo nos leva a não somente amarmos o outro, em sua fragilidade, falhas e imperfeição, mas a amarmos também a nós mesmos. Uma sensação de conforto e pertencimento nos acomete quando amor e aceitação caminham juntos. E nossa estadia no mundo se torna muito mais fácil. 

Dita Von Teese, estrela da cena burlesca contemporânea, contou certa vez algo que ela aprendeu quando começou a fazer shows de striptease em Los Angeles. As colegas — dançarinas loiras platinadas, de bronzeado artificial, corpo depilado, biquínis fluorescentes — tiravam a roupa para um público de cinquenta homens no clube e ganhavam 1 dólar de gorjeta de cada um. Dita subia ao palco com luvas de cetim, corpete e tutu, cabelos escuros e pele translúcida, e fazia um striptease excitante até que só sobrasse a calcinha, deixando a plateia confusa. 49 homens a ignoravam, enquanto um lhe dava 50 dólares. Aquele homem, disse Dita, era o público dela. 

Von Teese se propôs, ainda no início da carreira, a vender autenticidade e singularidade em um mercado cujo mainstream é pouco flexível quanto a estas características, o do sexo. Ainda assim, a confiança de que o espetáculo anacrônico que se propunha a fazer valia à pena por conta de um seleto grupo de pessoas que saberiam apreciá-lo, transformou-a em celebridade.

Hoje, Von Teese é considerada um ícone de beleza alternativa, tendo criado, ao longo da carreira, uma linha de lingerie, assinado cores de batom e sido continuamente fotografada andando toda montada pelas ruas da Califórnia. Hoje seu show, no qual tira a roupa dentro de uma taça gigante de martini, cobra ingressos altíssimos por poucos minutos de apresentação. Um homem, cinquenta dólares, versão ampliada. 

Esse é ponto de convergência entre uma animação infantil e uma artista burleca, o mesmo ponto onde desaguam todas as narrativas de aceitação: as pessoas envolvidas abraçam o risco de serem a face mais real, mais estranha e mais autêntica de si mesmas. Amanda Palmer, vocalista da banda punk The Dresden Dolls escreveu sobre isto em seu livro A arte de pedir.

Amanda fez da vulnerabilidade um esporte de alto risco: nas artes, foi uma das pioneiras no projeto de financiamento coletivo, mas, antes disso, já se expunha ao julgamento das pessoas atuando como estátua viva nas ruas dos Estados Unidos, pulando de costas do palco para que a plateia dos shows a aparasse ou tirando todas as roupas para que os fãs desenhassem em seu corpo. Amanda escreve que, em determinado momento, se deu conta de que todo o gesto artístico que fez, na vida, se resumia a um único manifesto, martelante, dilacerante, martelante, dilacerante, com um tema só: POR FAVOR, ACREDITEM EM MIM. SOU REAL. DÓI. 

A ideia de tornar-se real é um empréstimo de Amanda da história infantil intitulada The velveteen rabbit, de Margery WilliamsSem nunca ter recebido edição comercial no Brasil, a história tem minha obsessão de tal maneira que não só a traduzi, como ilustrei parte dela por puro diletantismo, sem jamais ter vendido o trabalho. Em um trecho do livro, o coelhinho de veludo pergunta a um cavalo de brinquedo:

– O que é REAL? – perguntou um dia o Coelho. – Significa ter coisas que zumbem dentro de você e uma manivela saliente?

– Real não é como você é fabricado – explicou o Cavalo. – É algo que acontece com você. Quando uma criança o ama por muito tempo, não apenas para brincar, mas realmente o ama, então você se torna real.

– Isso dói? – perguntou o Coelho.

– Às vezes – respondeu o Cavalo, pois sempre dizia a verdade. – Mas, quando você é real, não se importa com a dor.

– E acontece de uma só vez, como dar corda, ou aos poucos?

– Não acontece de uma vez só – disse o Cavalo. – Você se torna. Leva muito tempo. Por isso, nem sempre acontece com gente que se quebra com facilidade, ou tem pontas afiadas, ou precisa de muitos cuidados. Geralmente, quando alguém se torna real, seus cabelos já foram quase todos arrancados, os olhos caíram, as articulações estão soltas e você está todo esfarrapado. Porém, essas coisas não importam em absoluto, pois, quando você é real, não pode ser feio, exceto para aqueles que não compreendem. (The velveteen rabbit – tradução minha)

Desenhos animados, livros infantis, romances clássicos, experiências em torno da sexualidade, do amadurecimento, do despertar artístico, embora muito diversas em suas formas, possuem um núcleo comum em seu conteúdo: são narrativas em torno da abertura para a vulnerabilidade e  para os machucados ou laços gerados pela aceitação (seria mais acertado dizer amor?) ou falta dela.

Quando damos azar, somos discriminados, vilipendiados, silenciados, docilizados a partir de nossa singularidade, estranheza, sombra. Mas, quando damos sorte, somos aceitos e, muitas vezes, amados, justo por conta do que nos distingue. O que parecia maldição se torna tesouro. E a realidade muda, a partir da inserção das novas cores que trazemos conosco.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.