A culpa é uma emoção poderosa
Desde o início da pandemia, não temos paciente com Covid em nosso hospital na Inglaterra. Sinceramente? Me sinto mal
Cintia Bailey
cintia.bailey@outlook.com
Lembro-me dos dias em que conhecia pessoas pela primeira vez aqui na Inglaterra e dizia que vinha do Brasil. Como, na maioria das vezes, via um grande sorriso em seus rostos, enquanto me perguntavam como eu poderia deixar aquele paraíso tropical para morar na Inglaterra cinzenta. Agora, quando digo às pessoas que sou brasileira, a reação instantânea delas é me perguntar o que está acontecendo, e se meus amigos e familiares estão sãos e salvos.
Desde 2008, ano em que me mudei para cá, nunca vi o Brasil tão mal retratado por aqui. Desde que Bolsonaro foi eleito, não recebi nada além de olhares de pena e perguntas sobre o que estava acontecendo com meu país.
E então veio o Covid.
Sabemos que o desempenho do governo no combate à pandemia é catastrófico e não é surpresa alguma que o Senado brasileiro tenha lançado um inquérito sobre a forma como Bolsonaro está lidando com a pandemia, amplamente condenada por médicos especialistas como uma das piores do mundo. O número de mortos no país devido à doença é o segundo maior depois dos Estados Unidos.
Entendo que seja bem fácil olhar para a Inglaterra e ver um país que parece ter administrado bem os últimos 14 meses. Um país com um esquema de retenção de emprego que foi prorrogado até 30 de setembro de 2021 (que paga 80% dos salários dos funcionários pelas horas em que eles não podem trabalhar na pandemia) e um programa de vacinação que é um sucesso (quase 35 milhões de pessoas, ou mais da metade de todos os adultos do Reino Unido, já receberam a primeira dose, e mais de 16 milhões de pessoas receberam a segunda).
Por mais positivo que isso tudo pareça, é importante lembrar que o Reino Unido é o 4º país em número total de mortes, atrás dos EUA, Brasil e Índia, que têm populações muito maiores (151 mil mortes em que coronavírus foi mencionado no atestado de óbito, mesmo sem teste).
Embora tenha havido progresso, não podemos esquecer dos múltiplos passos em falso do governo britânico, bem como cálculos errados e respostas atrasadas, que contribuíram para o número de mortos.
No início da pandemia, o primeiro-ministro Boris Johnson hesitou repetidamente em iniciar um lockdown nacional. Quando ele anunciou que as pessoas deveriam interromper todo contato social desnecessário em 16 de março de 2020 – antes que o lockdown legalmente entrasse em vigor uma semana depois, em 23 de março –, os pubs foram autorizados a permanecer abertos por quase uma semana, e a gente sabe como o povo aqui bebe…
Em um dos momentos mais ridículos, conselheiros do governo advertiram as pessoas que deveriam parar de apertar as mãos para retardar a propagação do vírus – no mesmo dia em que Boris Johnson se gabou de que estava apertando a mão de “todo mundo” em um hospital.
Enfim, nem tudo são flores por aqui. Mas ontem, em um quadro completamente diferente, fui informada que, pela primeira vez desde o início da pandemia, não temos nenhum paciente com Covid em nosso hospital. Um grande marco.
Sinceramente? Me sinto mal… Mal por ter mantido meu emprego esse tempo todo, ter uma filha saudável em casa e uma família no Brasil que até agora conseguiu superar a pandemia. Mal por ter recebido as duas doses da vacina. Mal por meu país estar passando por um momento tão difícil e observar, de longe, tanto sofrimento. Essa culpa é uma emoção poderosa. E como não ter?
Cintia Bailey é jornalista e podcaster. Está no Instagram.