Bemdito

Fúria feminista, punk e coragem

Nem doce, nem amável, nem burguesa: o que torna Virginie Despentes a insurgente que desafia os limites do feminismo
POR Camille C. Branco
Foto: Jean-François Paga

Quando li Virginie Despentes pela primeira vez, fiquei desconcertada. Uma opulenta agressividade lexical se derramava texto abaixo. Tratava-se de um conjunto de ensaios, publicados pela n-1 Edições, que recebeu o título de Teoria King Kong. Neles, Despentes remete a uma miríade de temas caros ao pensamento feminista: prostituição, estupro, pornografia, produção artística, beleza. Mas ela o faz com uma violência que não procura redimir a si mesma.

Não busca salvação, nem resgate. Não pede desculpas. Ao começar seu livro, o baque surdo me fez perguntar, sozinha: “Pode escrever assim?”. Havia um objeto impresso em minhas mãos que atestava que sim. Mas eu ainda era assaltada por uma sensação de miragem, quando lia a autora proclamar: “Escrevo a partir da feiura, para todas as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande mercado da boa moça”.

Despentes é uma artista francesa multidisciplinar: já trabalhou com cinema (um de seus filmes foi inclusive proibido na França), com literatura de ficção, com ensaio, com música. Já se prostituiu e trabalhou como stripper. Mistura uma bagagem cultural erudita, leitora de filosofia, versada em arte sacra, em literatura canônica, com uma estética punk, insubmissa e revolucionária. Por isso, talvez, Despentes provoque tanta espécie: não é facilmente etiquetável, nem assimilável.

É inviável dizer que, ontologicamente, ela seja isto ou aquilo. Não é possível dizer que se trata puramente de uma intelectual, quando a lemos escrever que sempre ter se sentido feia, a salvou de levar uma vida de merda. Não cabe também a classificação de Despentes como uma iconoclasta polemista e rasa, uma vez que ela se mostra consecutivamente versada em psicanálise, teoria política, estética, poesia. Tampouco cabe a pecha mais conservadora de se tratar de uma feminista ressentida pela falta de amor e sexo, uma vez há um registro comovente do amor que a autora sente por seu ex-companheiro, Paul Preciado, no texto que prefacia seu livro, Um apartamento em Urano.

Porém é certo que Despentes é insurgente e oposicional. Ela está insatisfeita com o dispositivo da feminilidade e exausta da tentativa contínua de as mulheres passarem mensagens tranquilizadoras aos homens. Ela afirma que estamos constantemente dizendo: “Não tenham medo de nós”. Para isso, que usemos roupas desconfortáveis, sapatos que dificultam o andar, que refaçamos o nariz ou turbinemos os seios, que morramos de fome. “Sejamos livres, mas não muito. Queremos jogar o jogo, não desejamos os poderes associados ao falo, não queremos assustar ninguém”, diz ela, enquanto nos assusta, ao afirmar que estupros acontecem o tempo todo, são um ato aglutinador, que conecta múltiplas classes, raças, idades. Que está na base da nossa sexualidadade e de nossas fantasias. E sobre o qual existe espantosamente pouca representação simbólica, pouca esfera de linguagem, que dê conta do que sentem as vítimas.

Algumas das perspectivas de Despentes sobre prostituição e pornografia me parecem excessivamente marcadas por um olhar de mulher do chamado primeiro mundo. No entanto, minhas discordâncias da autora não desabonam sua dicção, pelo contrário: desafiam o leitor a se inquietar, pensar e se espantar com o que leu. Em se tratando de meu primeiro texto do ano, deste ano que promete não ser simples de inúmeras formas, me parece especialmente oportuno debater sobre uma voz que consegue ser, na mesma proporção, bélica e esperançosa. Ela afirma que, após anos de cuidadosa investigação, percebeu: a feminilidade é a putaria.

Uma arte pautada no servilismo, que pode ser distorcida para assumir a compleição de sedução e glamour, mas que no fundo, sempre será um esporte de baixo nível, cuja regra é aprender a se comportar como inferior. Ao mesmo tempo, Despentes defende que não é doce, não é amável e não é uma burguesa. Que talvez, se tivesse outra história, sentisse vergonha do que se tornou. Mas que veio do punk rock, e tem orgulho de não ter conseguido. Seu ensaio final é intitulado “Boa sorte, meninas”. É o que desejo neste 2022: boa sorte para nós. 

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.