Bemdito

Anton e as sementes de girassol

Última obra do diretor Zaza Urushadze ensina sobre o que a guerra impõe às pessoas comuns
POR Olivia B. de Avelar

Nós estamos em guerra. O seu mundo e o meu mundo estão em guerra. Os nossos mundos estão todos em guerra. A falsificação ideológica que sugere que nós temos paz é pra gente continuar mantendo a coisa funcionando. Não tem paz em lugar nenhum. É guerra em todos os lugares, o tempo todo.”
Ailton Krenak 

Tenho acompanhado as notícias sobre a guerra em solo ucraniano. É difícil para mim – e acredito que para muitas pessoas – que não entendo muito bem de geopolítica e conflitos internacionais, tentar alcançar os inúmeros e confusos passos dados e atitudes tomadas por líderes dos países envolvidos que podem ter desencadeado mais esse conflito. E tão ou mais difícil do que tentar entender como chegamos até aqui é pensar sobre os próximos dias, semanas ou meses.

As palavras de Ailton Krenak, que escolhi para abrirem esse texto, não me saem da cabeça desde o dia 24 de fevereiro – dia que marca o início desse conflito que tem recebido muito mais cobertura de todos os veículos de informação do que tantos outros que estão acontecendo, nesse exato momento. De forma alguma pretendo, com o que acabei de dizer, diminuir a relevância de olharmos para o povo ucraniano durante esses dias de horror, mas sobre esse detalhe pretendo falar um pouco mais adiante, mais algumas linhas e chegarei lá.

Sobre a citação de Krenak, ela está ali para que eu mesma me lembre, o máximo de dias que eu puder, do que ele diz: a guerra não começou há pouco mais de uma semana, a guerra nunca acaba. Somos nós – os que vivemos um pouco mais longe das trincheiras e que nos protegemos e nos resguardamos dentro dessa sagrada paz medicada – que temos o soberbo luxo de nos esquecermos dela.

Somos nós que, guiados pelos “formadores de opinião” pública, escolhemos com quais conflitos vamos nos importar e quais países receberão nossas rezas, nossos bons pensamentos e nossa atenção, quais cidadãos serão merecedores de mudarmos nossos avatares da internet em apoio às suas causas e à sua dor, quais cores de pele, cabelo e olhos nos comovem ao ponto de pintarmos as cores de suas bandeiras em nossas mídias sociais.

O que pretendo, ao escolher a frase que abre essa coluna – que fala sobre as muitas guerras que estão acontecendo no mundo agora -, e mesmo assim decidir falar sobre um filme que se passa em solo ucraniano é dizer, ao mesmo tempo, que existem muitas guerras, mas que só algumas delas vendem bem e causam a verdadeira comoção que todas elas deveriam causar. Mas também pretendo dizer que, em meio a tanta dor, pensarmos nos civis ucranianos e em todo o pavor que estão vivendo é, na minha opinião, um sentimento de compaixão genuíno – desde que esse sentimento não nos afaste da realidade muito mais dura, como disse Krenak, de que a guerra é onipresente. 

Em meio à cacofonia de posts e transmissões ao vivo sobre a invasão Russa à Ucrânia, um vídeo em especial me comoveu muitíssimo: gravado a uma distância segura, alguém filmou uma senhora ucraniana que conversava com um soldado russo fortemente armado. A rua vazia, os sons de disparos e explosões ainda um pouco distantes, aquela mulher se colocava há apenas alguns passos de distância e estendia as mãos para o soldado que se mantinha em silêncio, as duas mãos segurando uma metralhadora ou qualquer outra arma de alto calibre que eu não sei reconhecer.

Segundo a legenda, ela insistia para que ele colocasse no bolso do uniforme as sementes de girassol que ela lhe oferecia. “Quando você morrer em solo ucraniano, elas vão germinar e florescer. Nascerão girassóis da minha terra, do chão do meu país. Leve essas sementes com você.” O curto vídeo termina de forma abrupta e não podemos saber o que aconteceu em seguida. Muito provavelmente, a mulher foi afastada pelo soldado, ou mesmo trazida para algum lugar seguro por aqueles que observavam a cena.

De qualquer forma, foi esse vídeo sobre uma mulher anônima em um momento de impensada coragem ou extremo desespero que me fez pensar nas pessoas comuns, de todo o mundo, e de suas atitudes de medo, audácia, autoproteção, cansaço, tristeza, raiva e dor e em como cada uma delas buscará em si mesma e em sua vida e memórias a força que será necessária para continuarem de pé, para continuarem seguindo não só até o final desse conflito, mas pelo resto de suas vidas depois dos dias de tanto sofrimento. Foi essa a cena – a mulher anônima oferecendo a um soldado um punhado de sementes de girassol – que me levou a pensar sobre a história do filme Anton.

As primeiras cenas de Anton – laços de amizade, última obra do diretor Zaza Urushadze, mostram um senhor já idoso chegando ao que parece ser um hospital ou asilo e se sentando em um banco de jardim que ficava próximo à entrada desse grande prédio movimentado. Ele olha para o céu claro e cheio de nuvens e, logo em seguida, já estamos dentro das suas memórias de infância, quando ele, ainda criança, está deitado de costas em uma grande pilha de feno, conversando e brincando com seu melhor amigo, chamado Jakob.

Suas lembranças contam a história que se passa em 1919, em uma pequena vila da Ucrânia. Anton é de uma família alemã e católica – uma das muitas que se estabeleceram nessa região para cultivar as terras próximas ao Mar Negro. Jakob é filho de um pequeno comerciante judeu da mesma vila. Eles constroem sua amizade em meio às vidas massacradas pelo exército Bolchevique, pelo antissemitismo, pelas rebeliões organizadas pelos pequenos agricultores, pelos líderes políticos que cruzavam aquelas terras tristes em seus trens, cavalos e carros de guerra.

Em determinada cena, os dois meninos apontam uma máquina fotográfica para o céu – máquina essa que tinha sido trocada por comida na mercearia do pai de Jakob e que acabou se transformando em mais um brinquedo nas mãos dos meninos – na crença de que, uma vez revelada a fotografia, ela mostraria, em meio às nuvens, os rostos do pai e do irmão de Anton e da mãe e do irmão de Jakob, todos mortos durante os intermináveis anos de batalhas e conflitos.

Sabemos, pela primeira cena do filme, que os meninos cresceram e envelheceram, contudo, a relevância sentimental e geradora de vida que essa fotografia feita em uma tarde perdida em meio à guerra de tantos anos atrás, o retrato de uma amizade, só nos será completamente revelada nos últimos minutos do filme. E foi depois que terminei de assistir ao filme que me peguei pensando, novamente, naquela senhora do vídeo, a mulher que segurava as sementes de girassol contra um soldado… e me pergunto se essa será sua flor preferida… se os girassóis são a flor símbolo de sua terra, de sua história.

Imagino, ruminando em silêncio, por quantos campos de girassol floridos ela brincou, correu, amou e chorou suas emoções juvenis. Me pergunto o quanto essas sementes são tudo o que ela poderia usar para tentar mostrar que toda sua existência depende das relações de afeto que ela construiu com cada uma das pessoas importantes em sua vida e que suas memórias mais queridas foram vividas tendo uma paisagem florida como cenário e parte constituinte dela mesma.

Não quero – ao mencionar sementes de flores contra metralhadoras – sugerir que as forças são, de alguma forma poética ou pueril, sequer equiparáveis. É bastante obvio e triste saber quais são as mãos que vão morrer e rapidamente desaparecer: os pés dos soldados esmagam as flores e suas armas extinguem uma vida em segundos, ao obedecerem prontamente às ordens a que seguem.

Porém, são as sementes de girassol de uma mulher anônima, nas ruas de alguma cidade ucraniana sendo despedaçada e a fotografia do céu feita pelos amigos de infância separados pela guerra que me respondem quando me pergunto sobre as guerras. Nenhuma guerra faz sentido algum e cabe a cada ser humano que tem sua vida inteiramente destruída por elas criar sua parcela de entendimento e sentido e lutar com as mais frágeis e intangíveis armas que ele possa dispor.

As memórias, os afetos, a saudade, a esperança, a amizade, as velhas fotografias e os girassóis: tão fácil e rapidamente aniquilados pelas armas de fogo e por todo poderio bélico de cada país, mas tão primordialmente essenciais para cada alma de cada indivíduo que anseia e precisa se manter de pé e vivo, pois cada sobrevivente sabe e acredita que mesmo inúteis contra os mísseis e blindados são essas as bases que nos dão o sentido que nenhuma guerra tem – o sentido da vida.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.