Bemdito

Por um olhar feminista negro nas cidades

Bethânia Boaventura nos apresenta caminhos para o Dia Internacional das Mulheres Negras Latino-Americanas e Caribenhas
POR Bethania Boaventura

No dia 25 de julho, marcado como o Dia Internacional das Mulheres Negras Latino-Americanas e Caribenhas sob a luz da resistência e luta da líder quilombola Tereza de Benguela, reivindicamos um olhar específico sobre a cidade através de uma perspectiva feminista negra. 

Diante das violências raciais e de gênero que testemunhamos diariamente, das remoções e despejos que vulnerabilizam ainda mais a população negra, e dos índices de feminicídio agravados pela realidade pandêmica, torna-se ainda mais central insistir na importância de que sejam construídas reflexões sobre cidades que considerem as experiências urbanas a partir de um olhar interseccional. A perspectiva feminista negra para os debates urbanos reivindica o reconhecimento das dimensões histórica, configuracional e sociopolítica estruturantes das cidades brasileiras: a racialidade e o gênero. 

Ainda que as cidades brasileiras tenham sido fundamentadas pela presença negra e fisicamente construídas por mãos pretas, o planejamento urbano tem sido pensado para preservação do homem branco, heterossexual e cisgênero como padrão normativo. Esse modelo reafirma as hierarquias raciais e as construções sociais sobre os papéis de gênero, afetando diretamente a vida de certos grupos sociais marginalizados, especialmente as mulheres negras. 

Como consequência disso, as áreas destinadas às mulheres negras nas cidades comumente são as áreas mais carentes de infraestrutura de saneamento, transporte público, áreas livres, creches e segurança. Ao mesmo tempo, as experiências urbanas dessas mulheres são marcadas por violências de raça e gênero, como assédio e racismo, nos espaços públicos ou privados, enquanto seus desejos de cidade e necessidades básicas são ignorados. 

Adotar a pespectiva feminista negra como motor tanto nos permite reconhecer as desigualdades raciais e de gênero que fazem com que as mulheres pretas empobrecidas e periféricas tenham as experiências mais radicais de precarização nas cidades, quanto nos possibilita também reivindicar por formas de reparação. 

Evocando Patricia Hill Collins, pode-se dizer que, além do reconhecimento do racismo e do sexismo que afetam os corpos negros femininos, essa perspectiva também permite que, através de um olhar crítico privilegiado, por vir da base da pirâmide social, revele-se a criação de possibilidades de ruptura das opressões e desigualdades urbanas. Consequentemente, mobilizando as estruturas sociais de uma sociedade inteira em direção a cidades mais democráticas e justas para todos. 

Nesse sentido, podemos reconhecer essas rupturas na apropriação das ruas, becos e subterrâneos para a construção de revoltas negras na cidade colonial por Luiza Mahin; na implantação do primeiro terreiro de candomblé do Brasil, no centro da cidade de Salvador, por Iya Nassô; na articulação política por uma cidade negra feminista pela defensora dos direitos humanos Vilma Reis; na denúncia da falta de politicas habitacionais efetivas, protogonizada pela coordenadora estadual do Movimento Sem Teto da Bahia, Maura Cristina; no olhar da vereadora Marielle Franco, sobre a potência das favelas e a violência do Estado no processo de implantação das UPPs; e na defesa do território quilombola e da comunidade pesqueira de Ilha de Maré (BA) por Eliete Paraguassu. 

São exemplos de como essa perspectiva propõe deslocar o olhar para as grafias invisibilizadas dos corpos femininos negros nas cidades e sua luta diaspórica e ancestral. Das construções coletivas de formas de existência nos quilombos, favelas, irmandades, terreiros de candomblé, feiras e ocupações de edifícios abandonados, nossas “Luizas”, “Iyas”, “Vilmas”, “Mauras”, “Marielles”, “Elietes” e “Terezas de Benguela” têm reivindicado e assegurado o direito à vida, enquanto criam possibilidades e alternativas para a efetivação do direito à moradia e do direito à cidade. Olhar e reconhecer essas lutas cotidianas, estratégias de resistências e formas de apropriação feministas negras do espaço urbano, nos permite reconfigurar o presente, ressignificando, consequentemente, o passado e criando possibilidades de transformação do futuro. 

Bethania Boaventura

Arquiteta e urbanista pela UFBA, mestre em Urban Development Planning pela University College London.