Bemdito

Os adjetivos inadmissíveis de Conrado Hübner

Alvo de intimidação de membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, o professor Conrado Hübner é prova viva da ameaça à liberdade de expressão no Brasil
POR Juliana Diniz

Escrever artigos de opinião no jornal não deveria ser considerada atividade de risco, especialmente se nos referirmos a artigos publicados em uma república democrática no ano de 2021. Concluímos o oposto disso quando pensamos no Brasil de Jair Bolsonaro, Augusto Aras e André Mendonça, e no constrangimento vivido por intelectuais como Celso de Barros e Conrado Hübner Mendes. Ambos são colunistas da Folha de São Paulo e profundamente críticos ao presidente, ao STF e às instituições do sistema de justiça. 

O assédio aos intelectuais cheira bastante a ameaça cantiga, vinda de outros tempos. Hübner, professor de Direito da Universidade de São Paulo, já pode ser considerado o professor mais perseguido do Brasil – e digo isso não pela quantidade de atos intimidatórios, mas pelo seu peso institucional e por seu teor político.

O primeiro deles foi protagonizado por ninguém menos que o Procurador-Geral da República, autoridade máxima do Ministério Público, que, dentre as suas atribuições, deveria zelar pelo exercício pleno das garantias constitucionais dos brasileiros. Augusto Aras, que acaba de ser reconduzido pelo presidente da República para mais dois anos no cargo, apresentou à Justiça Federal queixa-crime contra Hübner Mendes por injúria, calúnia e difamação, além de provocar o Conselho de Ética da Universidade de São Paulo para que avalie a conduta do professor pela opinião subscrita em sua atividade como colunista. 

Até o momento, o reitor da instituição de ensino a que pertence o colunista não se manifestou formalmente sobre o caso, e o recebimento da queixa-crime contra Conrado ainda não foi concretizado pela Justiça, que já recebeu uma defesa preliminar do professor. Mesmo que as iniciativas não prosperem, já se pode dizer que a intimidação gerou seus efeitos desejados. O constrangimento de ser alvo de procedimentos administrativos e judiciais, o custo emocional e econômico da defesa, a exposição pública são, em certa medida, irreversíveis e têm efeito “pedagógico”:  mostram para os críticos do governo (e de Aras) o que os aguarda caso desejem ser mordazes no exercício público da palavra, como já havia explicado Hübner ao Bemdito em entrevista

Aras ofendeu-se com o artigo “Aras é a antessala de Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional”, publicado na Folha em janeiro deste ano, em que Conrado Mendes denuncia sua omissão na tarefa constitucional de fiscalizar, seu colaboracionismo com um governo de práticas poucos republicanas e por seu ímpeto engavetador.

 Conforme a defesa do colunista explica, em resposta à queixa-crime apresentada à Justiça Federal, “não há ofensa. Há, sim, críticas severas ao desempenho constitucional do atual procurador-geral da República – pela indisfarçável subserviência ao presidente Jair Bolsonaro e seu entorno. É preciso registrar que o inconformismo gerado pelo melancólico desempenho do querelante no comando da Procuradoria-Geral da República se generaliza”, não é apenas o professor que a denuncia, é a imprensa, são os seus pares. 

A iniciativa do chefe máximo do Ministério Público já seria grave o suficiente, mas foi acompanhada por outro movimento igualmente perigoso, agora tendo um representante do Poder Judiciário como figura central. Durante a semana passada, conforme noticiou a Veja, o ministro do Supremo Tribunal Federal Kássio Nunes Marques apresentou representação ao Ministério Público para que a PGR apure a prática de mais um crime de contra honra supostamente praticado por Conrado em razão da publicação de um artigo.

O artigo em discussão é outro. O texto “O STF come o pão que o STF amassou” denuncia a chicana jurídica do ministro Nunes Marques, que deferiu liminar às vésperas do feriado para autorizar a abertura de templos religiosos no momento mais grave da pandemia, contrariando decreto estadual e municipal, em um movimento claro de “drible” do plenário, como salientou Mendes em sua defesa.

Chamado de “mal-intencionado e chicaneiro”, o ministro ofendeu-se, referindo aos inadmissíveis adjetivos do professor. Esse é o ponto principal de incômodo que a atuação de Conrado Hübner suscita: é uma figura pública com formação de excelência, com voz de destaque, grande capacidade retórica que se manifesta pela escolha precisa de seus adjetivos. 

Seus textos não apenas desnudam as autoridades que denunciam, são como lanhadas morais em praça pública, justamente porque as palavras são manejadas com a precisão de um bisturi. São lidos, comentados, chegam aos corredores de universidades, nos gabinetes inacessíveis dos tribunais, que não costumam ouvir críticas tão enfáticas à sua atuação. Tais qualidades explicam a reação tão afetada, desproporcional, sentida. Os textos são instrumentos preciosos de crítica pública e esse seu valor fundamental para reagir aos desmandos de autoridades acostumadas a mandar, mas pouco preocupadas em obedecer o que lhes investe de poder: a lei.

Por todos os atos de intimidação que o Brasil assiste, é mais do que urgente uma adequação jurídica dos crimes de calúnia, injúria e difamação e da compreensão de seus limites quanto se trata da atividade jornalística. Do contrário, exemplos como o de Conrado só irão se avolumar na sombra da burocracia forense, levando os críticos ao cansaço tão destrutivo que a só a seletividade judicial é capaz de provocar em uma geração.

Uma nota assinada por mais de uma centena de juristas oriundos das principais universidades brasileiras e de instituições estrangeiras presta solidariedade ao professor Conrado Hübner e reafirma o esforço conjunto de defesa da democracia.

O texto é subscrito por mim, que também venho aqui exercer minha parcela do direito à crítica ao escrever esse artigo, ciente de que, mais importante que temer, é estratégico reagir, porque a liberdade de expressão se mantém viva pelo gesto de dizer, por inadmissíveis que pareçam às autoridades as palavras que escolho para a elas me dirigir. 

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.