Bemdito

Nomear é deixar manchas nas paredes

A versão da História que nos contaram foi colonizada e sequestrada; é preciso expor, questionar, tocar fogo e gritar bem alto
POR Camila Holanda
Foto: Reprodução/TV Globo

Imagine uma pessoa segurando uma bomba. O artefato vai explodir, manchar as paredes do entorno e depois alguém vai limpar os resquícios. As manchas vão ficar lá. A metáfora é compartilhada pela bicha não binária ensaísta e performer Jota Mombaça, em um vídeo curto que fala sobre redistribuição da violência. A fala de Jota muito lembra o incêndio provocado na estátua de Manuel de Borba Gato (1649-1718), no sábado passado, durante manifestação em São Paulo. 

Pensar sobre as estratégias de redistribuição da violência não é necessariamente pegar em armas. É algo mais amplo, é sobre propor reparar, romper estruturas, olhar para o passado e afirmar que o presente e o futuro podem muito mais e precisam ganhar novos rumos. É sobre deixar as manchas nas paredes. “Não tem nada a ver com declarar uma guerra. Trata-se de afiar a lâmina para habitar uma guerra que foi declarada à nossa revelia, uma guerra estruturante da paz deste mundo, e feita contra nós”, escreve Jota Mombaça no ensaio “Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!”. 

Há pouco mais de um ano, a deputada estadual Erica Malunguinho (Psol) protocolou um projeto de lei (PL404) com o intuito de proibir, em todo o estado de São Paulo, homenagens a personagens e eventos históricos ligados à prática escravista no Brasil, como a estátua de Borba Gato. “Para reescrever a História”, disse a deputada no Twitter, em 24 de junho de 2020. 

Na mesma rede social, a deputada contextualizou: “E há tempos o mov negro sinaliza a necessidade de mudanças nas formas de narrar a História do Brasil. Os monumentos, por exemplo, são materiais da memória coletiva, de forma que eles são utilizados para documentar o passado das sociedades e povos #PL404 #NãoHomenageieumRacista”. 

Inaugurada em 1963, a estátua de Borba Gato é a controversa lembrança de uma história de colonização, estupros, etnocídios e epistemicídios. O Coletivo Negro de Historiadores Tereza de Benguela encontrou 180 monumentos, pulverizados por 24 estados brasileiros, que homenageiam personagens escravocratas, incluindo a estátua de Borba. 

Partindo de uma pesquisa extensa, o coletivo publicou a Galeria de Racistas em site que mapeia as homenagens realizadas a estes homens (sim, a maior parte é de homens). Exemplo em Fortaleza (CE) é o monumento que homenageia Brigadeiro Antônio de Sampaio (1810-1866), localizado na avenida Duque de Caxias, bem no Centro da capital cearense. A personagem foi um infante-símbolo e patrono do Exército e da Infantaria, que atuou em repressão à Cabanagem e à Balaiada, ambos movimentos populares que tiveram participação de pessoas negras e indígenas. 

Assim como o Coletivo Negro de Historiadores Tereza de Benguela faz, uma das estratégias básicas da redistribuição da violência é nomear os opressores e colonizadores, nomear a norma, lembrar seus gestos, questioná-los, implodir. “Porque a norma é o que não se nomeia, e nisso consiste seu privilégio”, crava Jota. 

É possível reescrever a História, pois a versão que nos contaram foi colonizada, sequestrada, romantizando a violência e as mortes (físicas e simbólicas).  É preciso expor, questionar, tocar fogo, gritar bem alto. É preciso nomear.

Camila Holanda

É jornalista e mestranda em Comunicação na Universidade Federal do Ceará (UFC). Escreve conteúdos com perspectiva de gênero.