Bemdito

Seu feminismo quer salvar as mulheres islâmicas do quê?

Há feminismos que tomam a parte pelo todo quando se fala no uso do hijab, que é apenas uma das faces do islã
POR Camila Holanda
Fotos: Boushra Almutawakel

A série de fotografias “Mãe, filha e boneca”, de autoria da iemenita Boushra Almutawakel, ganhou destaque nos últimos dias. Nas nove imagens, está retratado o processo de  transformação das três personagens fotografadas juntas por meio do uso do hijab, até elas desaparecerem. As imagens ganham repercussão no momento em que nossos olhos aflitos observam o que está ocorrendo no Afeganistão, depois que o Talibã retomou o poder pondo fim ao hiato de quase 20 anos. 

A série de fotografias faz parte da discussão que está no centro do debate: a situação das mulheres afegãs com a volta do Talibã, as repressões, o hijab.  A reboque dessas temáticas, surgem os discursos salvadores ocidentalizados de que as populações femininas do Afeganistão precisam ser resgatadas pelo Ocidente, tirar o hijab, se libertar de uma fé opressora. Só que não é bem assim. Antes de qualquer análise, é preciso lembrar que a interpretação do Alcorão realizada pelos Talibãs é radical, violenta e patriarcal. Há outras interpretações possíveis feitas por outros grupos, tornando diversas as leituras sobre o livro sagrado, inclusive, de mulheres feministas islâmicas.

A proposta deste texto não é arriscar uma análise sobre o que ocorre no Afeganistão, mas estimular que seja repensada a nossa forma de perceber o que ocorre nos países do Oriente, principalmente, por feminismos que tomam a parte pelo todo quando se fala no uso do hijab, por exemplo, que é apenas uma das faces do islã. Não podemos ler o que ocorre com as mulheres islâmicas com as lentes do pensamento ocidental colonizador, assim como não podemos ler as mulheres indígenas latino-americanas numa perspectiva eurocêntrica. 

A pesquisadora Elzahrã Mohamed Radwan Omar Osman, doutoranda em Filosofia na Universidade de Brasília (UnB), publicou o artigo “Epistemologia feminista islâmica e a construção de um pensamento islâmico decolonial”, em que analisa a lógica capturada das leituras feitas por olhos colonizados. Ela crava o termo Feminismos Islâmicos Decoloniais, que buscam interagir com os estudos sobre a colonialidade. A proposta é que a modernidade não pode ser entendida sem que a gente entenda “os resultados dos diversos colonialismos que a engendraram”. 

“A colonialidade do poder, em sua dimensão epistêmica apresenta-se como a colonialidade do saber”, ela escreve. “Promovendo os racismos epistêmicos que pretendem deslegitimar toda a ordem de conhecimento, que não o eurocentrado, como irracional, primitivo, incipiente e desqualificado como projeto a ser perseguido; mas também como impossibilitado de qualquer tipo de existência”.

Em entrevista à BBC Brasil, a fotógrafa citada no início do texto, Boushra Almutawakel, alerta para o equívoco comum entre os povos ocidentalizados: criticar o islã tomando como base as leituras extremistas do Alcorão, como a que é feita pelos Talibãs. “A série “Mãe, Filha e Boneca” faz parte do meu trabalho como muçulmana, como árabe, como mulher iemenita usando o hijab”, disse na entrevista. “Há muitas coisas maravilhosas em nossa cultura, mas a parte misógina, a parte extremista, de cobrir completamente as mulheres, escondê-las, usá-las como propriedade, não faz parte do Islã”, rebate. 

É necessário que a gente fale sobre as mulheres afegãs, os riscos que elas correm diante do histórico violento e opressor do Talibã, e sobre o que pode ser feito caso elas necessitem de ajuda internacional, sem esquecer que as mulheres afegãs também se organizam politicamente, também criam redes de apoio. 

Fundada em 1977, a Associação Revolucionária de Mulheres do Afeganistão (Rawa) é luta e resistência, com atuação, inclusive, à época da ocupação soviética no Afeganistão (1979-1989), conhecida como Guerra do Afeganistão. De lá para cá, atravessaram outras diversas opressões e lutas, inclusive, nas últimas semanas, desde que o Tablibã tomou o poder. Mulheres islâmicas têm voz e lutam. Que a gente não perca a capacidade de se indignar, mas que repense o olhar colonizado e colonizador diante das demandas sociais e políticas de povos não-ocidentalizados.

Dicas

Alguns conteúdos que podem nos ajudar a pensar juntas:

O episódio #86 do Olhares Podcast, produzido pela Aline Hack, é uma forma de começar. O título é “Feminismo Islâmico”. 

Entrevista da BBC Brasil com Boushra Almutawakel, autora da imagem viral de mãe e filha de burca: “Nem toda mulher que usa véu é oprimida”, diz.

Artigo curtinho escrito por Elzahrã Osman, intitulado “Epistemologia feminista islâmica e a construção de um pensamento islâmico decolonial”. 

Camila Holanda

É jornalista e mestranda em Comunicação na Universidade Federal do Ceará (UFC). Escreve conteúdos com perspectiva de gênero.