Bemdito

A cilada dos espelhos

Um breve ensaio sobre o equilíbrio entre a busca da vida com todos os seus riscos e a fuga da própria aniquilação
POR Juliana Diniz
Foto: Woman in the mirror (Lisa Kramer)

É uma constatação desconcertante perceber que não somos o que imaginamos ser. Que não existe essa entidade fixa, bem resolvida e perfeitamente clara da nossa identidade.

Me pediram para que fizesse, em um evento público, uma audiodescrição, para que quem não podia me enxergar, mas podia me ouvir, imaginasse a mulher que dava corpo à voz que enunciava. Mais um convite – agora explícito, claro – para que eu me defrontasse com a minha imagem e fosse levada a responder: afinal, o que você vê?

Há muitas obscuras formas filosóficas de falar sobre as inconstâncias de uma alma. Sobre como nos assenhoramos de uma imagem nítida à qual nos apegar para existir. O ser como movimento em processo, o ser em eterno equilíbrio na difícil relação com o olhar do outro. Um olhar que é, ao mesmo tempo, condição necessária para que eu possa me definir e maldição de julgamento e castração.

Tantos espelhos por perto e eu aqui, em viagens ao redor do meu quarto, me perguntando insistentemente: quem eu sou? Qual é o meu propósito?

Por favor, não tome por uma inquietação juvenil. É mais visceral do que isso. Pode ser incapacitante a sensação incômoda, e tão nebulosa, de estar distante de si. De não se reconhecer em determinados humores, inquietações, projetos. Como se eu me olhasse em um reflexo quebrado.

 Tantas mulheres cindidas construíram metáforas interessantes sobre os espelhos ao falar da  busca desvairada que empreendemos por uma identidade sólida, íntegra, autônoma. A cilada dos espelhos, diria Beauvoir. Precisamos deles, mas um espelho sempre nos olha de volta. O que te diz esse reflexo que te busca? É um juiz terrível, um policial vigilante ou uma curiosidade amorosa, desarmada? Com quantos espelhos distintos se faz a história de uma vida?

Em Recordações da minha inexistência, Rebecca Solnit traz um relato que, vez por outra, eu recupero em períodos mais difíceis.

“Certo dia, muito tempo atrás, olhei para mim mesma de frente num espelho de corpo inteiro e vi minha imagem escurecer e ficar nebulosa e então recuar, como se eu estivesse desaparecendo do mundo, e não afastando aquilo da minha mente. (…) Naquele tempo eu desmaiava de vez em quando e tinha tonturas com frequência, mas essa ocasião foi memorável porque não me pareceu que o mundo estava desaparecendo da minha consciência, mas sim que eu estava desaparecendo do mundo. Eu era a pessoa que estava desaparecendo e também aquela sem corpo observando à distância – era as duas e nenhuma das duas. Naquela época eu estava tentando desaparecer e aparecer, tentando estar em segurança e ser alguém, e esses objetivos muitas vezes conflitavam entre si”.

Solnit fala sobre um conflito que parece cada vez mais perceptível: a tentativa contraditória de aparecer e desaparecer, de tentar ser alguém e, ao mesmo tempo, buscar segurança. Faz tanto sentido, porque “ser alguém”, para uma mulher, nunca é um projeto que acontece à revelia de grandes riscos e há momentos em que a vigilância nos exaure, e só precisamos de um pouco de paz e calma.

Ingenuamente, se acredita que crescer e tomar posse de si é um processo irreversível, como se fôssemos uma torre de blocos de montar que acumula camadas de fortalecimento. Que seremos sempre mais fortes amanhã do que fomos ontem. Mas viver é um empreendimento tortuoso como um caminhar de um bêbado. Há muito mais desvios, sombras e perdas de rotas do que se poderia imaginar. Nada pode ser mais terrível do que essas falsas imagens de plena potência que comovem os ativismos. Uma mulher com o braço tonificado, dizendo: yes, I can? Tão certa, tão confiante de si.

São mais honestas as pedagogas das fraturas, porque, como Rebecca escreveu na sua autobiografia, “ser uma mulher jovem significa enfrentar a sua própria aniquilação de maneiras inumeráveis, ou então fugir dela, ou do conhecimento dela, ou todas essas coisas ao mesmo tempo”.

Na maioria das vezes, não sabemos se estamos enfrentando ou fugindo, crescendo ou acumulando ressentimentos. Na maioria das vezes. a vida é como uma navegação em mar aberto, e o mar é sempre, sempre um território selvagem, indomesticável. Viver não é preciso. Navegar tampouco, e há que se buscar portos estratégicos para reparos de emergência.

Recordações da minha inexistência
Rebecca Solnit
Editora Companhia das Letras
2021
260 páginas

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.