Bemdito

“Mudança climática é questão de segurança nacional”

Desastres naturais, refugiados climáticos, instabilidade social e guerras: caminhamos para quebrar o pressuposto da civilização
POR Juliana Diógenes
Foto: Zakir Hossain Chowdhury / Barcro

Inevitável, sem precedentes e irreversível. Assim o The Guardian resumiu, em capa histórica, os resultados do relatório sobre mudanças climáticas, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, divulgado no último 9 de agosto. 

Se ainda havia dúvidas sobre a gravidade, agora é oficial: estamos diante de mudanças sem precedentes no clima. Algumas delas, irreversíveis – como o aumento da temperatura e do nível do mar.

Nesse contexto, o Bemdito conversa com a advogada, ativista ambiental e mestranda em Políticas Públicas na Universidade de Oxford, Beatriz Azevedo.

Para ela, a emergência climática precisa ser tratada como uma questão de segurança nacional. Com o aumento dos desastres naturais, cresce também o risco de instabilidade social, podendo desencadear diversos tipos de conflitos e até guerras.

Defensora da responsabilização criminal de empresas de combustíveis fósseis pelos danos ao meio ambiente, Beatriz convoca ao engajamento popular e político. E faz um apelo aos ambientalistas acadêmicos: se desencastelem para dialogar com a população.

Juliana Diógenes // O que você, eu ou o Brasil temos a ver com a onda de calor no Canadá, as queimadas na Califórnia, as enchentes na Alemanha e na China, e agora os incêndios na Grécia?

Beatriz Azevedo // Tudo isso já é um reflexo da mudança do clima. O aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera aquece o planeta e gera desequilíbrios nos padrões de clima. Eventos extremos passam a ser mais constantes, como enchentes, chuvas torrenciais e picos de temperatura, que são as ondas de calor. Isso tudo está relacionado com as mudanças climáticas. O que causa as mudanças climáticas é a emissão de gases de efeito estufa. Todo mundo vai ser impactado e sofrer mais esses efeitos. Mas os impactos se distribuem de maneiras muito desiguais na sociedade. Pessoas que estão em situação de maior vulnerabilidade vão ter muito menos condições de se adaptar. Mas vai impactar todo mundo. Vai chegar um determinado momento em que, se você não tem previsibilidade de quando vai chover, previsibilidade da quantidade de chuva, como vai plantar para alimentar as pessoas? Uma das perspectivas dos estudos que preveem os impactos das mudanças climáticas é a perda de safra.

As secas serão cada vez mais intensas. Vão ser inúmeros refugiados climáticos. Esse é o primeiro denominador comum: todo mundo vai sofrer

Mas precisamos entender que esses impactos estão distribuídos de maneira muito desigual. Boa parte das emissões vem dos países mais ricos e também das pessoas que têm maior poder aquisitivo. Um relatório da Oxfam diz que o top 1% dos países produz a mesma quantidade de gases de efeito estufa que os 50% de baixo. Quem está lucrando diretamente com isso, o agronegócio e as empresas de combustíveis fósseis, são os maiores responsáveis por tudo isso. Mudanças individuais têm grande poder transformador, porque, quando começamos a mudança dentro da gente, reverberamos essa mudança. Mas, individualmente, só conseguimos ir até certo ponto. Coletivamente, podemos pressionar e sensibilizar. No final das contas, o Estado tem que regular essas empresas. Acredito em mudanças individuais de comportamento como ferramenta de transformação social, e não numa perspectiva da responsabilização individual, porque isso tira o foco dos reais responsáveis, que são essas grandes empresas e os países que já tiveram a oportunidade de se desenvolver com o uso dos combustíveis fósseis. Esses países hoje têm uma responsabilidade histórica com o restante do mundo. 

Juliana // Por que esses eventos não devem ser vistos como cíclicos ou normais na história do planeta?

Beatriz // Esse discurso de que a temperatura do planeta sempre aumentou, e que esses crescimentos são cíclicos, foi promovido pelos negacionistas climáticos para negar a ciência do clima. No começo da ciência do clima, essas pessoas foram muito financiadas pela própria indústria do petróleo para promover estudos, porque essas empresas não queriam que a população soubesse do mal que o produto delas estava causando para o planeta. Mas esses estudos sempre foram minoria e, recentemente, mostraram-se completamente falsos. Porque a ciência do clima já chegou ao consenso de que as mudanças climáticas são causadas pelo homem, pelo aumento gigantesco de emissões de gases de efeito estufa que as nossas atividades têm causado. Quando vemos o mapa de concentração de carbono na atmosfera, o gráfico da temperatura oscila na história do planeta. Mas desde a Revolução Industrial, nos últimos dois séculos, a curva sai do gráfico. Quando você vê o aumento da temperatura recente, é uma subida íngreme, num espaço de tempo muito curto. Então, não é verdade que isso sempre aconteceu no planeta. A rapidez com que a temperatura e a concentração de gases de efeito estufa têm aumentado, e o tamanho desse aumento, são sem precedentes.

Estamos quebrando o equilíbrio do planeta. Por que o ser humano conseguiu deixar de ser nômade para se estabilizar, começar a fazer agricultura, construir cidades e civilizações? Pela previsibilidade do clima. Porque sabia quando ia chover e fazer sol, para poder plantar e se estabelecer. Então, estamos quebrando o pressuposto da nossa civilização

Estamos rompendo com a maneira como a nossa sociedade está organizada. Os efeitos disso vão ser catastróficos e vão estar muito mal distribuídos. As pessoas que têm menos condições de se adaptar vão ser as que mais vão sofrer. O Jeff Bezos foi de foguete dar um passeio no espaço. Se em algum momento alguma residência dele for invadida por inundação, ele vai ter outras, vai ter condições de se mover. Mas uma pessoa que está em situação de rua, como vai reagir a uma onda de calor? Uma pessoa que só tem uma casa, que é destruída por uma inundação, como essa pessoa vai viver?

Juliana // A mudança climática deve forçar a migração de 140 milhões de pessoas até 2050. Com a tendência de desertificação no Nordeste e de savanização no Norte do Brasil, é possível dizer que em 30 anos teremos refugiados climáticos dessa região?

Beatriz // Os refugiados do clima já existem hoje. A mudança climática é uma questão de segurança nacional, porque, no momento em que os desastres naturais se acentuam, isso vai gerando instabilidade social. Isso pode gerar guerras. Então, na realidade, já temos muitos refugiados climáticos. Eles só não estão sendo reconhecidos como tal. Infelizmente, no Direito Internacional, existe um impasse muito grande em classificar o que eles chamam de imigrantes do clima como refugiados climáticos porque o regime de refugiados já é muito frágil. Os países já têm muita relutância em receber refugiados. Então, no momento em que incluímos na categoria de refugiados também os imigrantes do clima, isso vai fazer com que se torne cada vez mais difícil que os países aceitem refugiados porque o número de refugiados vai se tornar cada vez maior. Mas acredito que essas pessoas devem ser chamadas de refugiadas climáticas, e não de imigrantes do clima.

Os países que tiveram a oportunidade de se desenvolver explorando combustíveis fósseis e explorando outros países, por meio da extração de recursos e, historicamente, da escravidão, precisam se responsabilizar. Uma das formas de se responsabilizar é abrindo as fronteiras

Já existem pessoas que são deslocadas internamente por eventos climáticos extremos. Esses eventos estão exacerbando várias fragilidades de vários países, o que leva a ondas cada vez maiores de migração e refugiados tentando entrar nos países da Europa e dos EUA. E precisamos falar sobre políticas de recebimento de imigrantes. Existe uma responsabilidade histórica nessa equação.

Juliana // Apenas 20 empresas respondem por um terço de toda a emissão de CO no mundo. E muitas têm adotado um discurso sustentável. O “capitalismo verde” é mais marqueteiro do que de fato eficiente?

Beatriz // As empresas de combustíveis fósseis são as que historicamente têm lucrado com esse problema. Não está no interesse delas solucioná-lo. Porque é a fonte de recursos. Sem os combustíveis fósseis, elas não têm capacidade de lucrar tanto quanto lucram hoje. É como pedir para a raposa tomar conta do galinheiro. Acredito que, para além das iniciativas de marketing, existe também a própria pressão política que essas empresas estão sofrendo. Uma iniciativa interessante foi a dos ativistas climáticos, por exemplo, que processaram a Shell na Holanda. São iniciativas assim que podemos tomar para colocar pressão nessas empresas.

Os governos precisam parar de subsidiar as empresas de combustíveis fósseis, que são altamente subsidiadas. Recebem dinheiro público para causar danos para a sociedade. Elas estão justamente lucrando com esses problemas

Inclusive, financiaram o negacionismo climático. Já sabiam dos efeitos da mudança do clima. O Alexandre Costa, professor da UECE, fala muito sobre isso. Um artigo no blog dele mostra que as empresas de combustíveis fósseis tinham relatórios internos apontando que as mudanças climáticas iriam causar todos esses problemas para o planeta. A resposta não virá do capitalismo verde e nem dessas empresas. A resposta virá da sociedade. Temos que pressionar os nossos governos para que tomem medidas sérias contra essas empresas, a começar pelo corte de subsídios. Definitivamente, as soluções não virão dessas empresas. Elas devem estar no banco dos réus sendo julgadas pelos crimes ambientais que cometeram contra o planeta e contra a humanidade. 

Juliana // Quais impactos das mudanças climáticas já podem ser vistos no Brasil?

Beatriz // A questão da mudança no clima é a frequência. Os eventos extremos vão se tornar mais frequentes. As chuvas torrenciais vão se tornar mais frequentes. Não tenho como dizer que “evento X” já é a mudança climática no Brasil. Mas existe a grande probabilidade de que seja. Por exemplo, sobre as queimadas no Pantanal, por que o fogo vem se espalhando cada vez mais rápido? Porque está mais seco e mais quente. Existe no Brasil hoje uma mistura explosiva de políticas ambientais enfraquecidas e práticas cada vez mais danosas por parte das pessoas que se beneficiam do enfraquecimento dessas políticas. Quando a Amazônia é desmatada, isso afeta a disponibilidade de água nos rios aéreos, que alimentam o sistema hídrico no país.

Estamos vendo hoje a crise hídrica, que está gerando uma crise de energia. Esta, por sua vez, contribui mais ainda com o problema das mudanças climáticas, porque as termelétricas tiveram de ser acionadas e isso gera mais emissões. É um problema cíclico que se retroalimenta

Vejam as inundações. Por que as chuvas se tornam mais torrenciais? Quando a temperatura da atmosfera aumenta, a capacidade de reter vapor d’água na atmosfera também aumenta. Então, a atmosfera passa a reter muito mais água. Quando finalmente chega no ponto em que o vapor d’água se condensa na forma de chuva, vai cair de uma vez, em um período muito pequeno de tempo. Nossas cidades foram construídas aterrando rios, com poucos espaços de permeabilidade. Quando essa água cai, não tem para onde correr. Sabemos que as pessoas que vivem nas áreas de maior vulnerabilidade nas cidades são as de renda mais baixa, que vão viver nas encostas e áreas ambientalmente frágeis porque não têm condições de viver em outros lugares. Quando essas enchentes e esses transbordamentos de rios ocorrem, geram também problemas sociais muito graves. Além dos fatores sociais estruturais, temos os fatores políticos, que são a falta de fiscalização ambiental, de financiamento para políticas públicas de conservação e preservação ambiental, o próprio discurso do presidente que incentiva o desmatamento. É o ambiente propício para o desastre. Acima disso, temos os efeitos das mudanças climáticas, que vão exacerbar todas essas problemáticas da má gestão ambiental.

Juliana // E no Ceará, o que deve acontecer?

Beatriz // O Ceará vai sofrer os impactos das mudanças climáticas principalmente em duas frentes: vamos sofrer pelo mar e pelo sertão. As secas vão se tornar mais severas e mais frequentes, e vão durar mais tempo. O período entre elas vai diminuir. E também vai ter o impacto do aumento do nível do mar, que vai causar erosão marinha e impactar as cidades. Isso pode causar problemas sérios de migração interna, de pessoas tendo que sair do sertão por causa da seca para buscar refúgio nas cidades.

Mas as cidades também não vão poder receber, pois se teremos chuvas cada vez mais torrenciais e aumento do nível do mar, levando em consideração que boa parte da nossa população está morando no nível do mar, temos um cenário caótico. Essa questão do deslocamento das pessoas pode chegar a ser muito séria

O impacto do aumento do nível do mar é mais a longo prazo. É calculado em 100 anos, então talvez seja um impacto que não vamos sofrer tão inicialmente. Mas o impacto da seca é, definitivamente, muito mais real. E, infelizmente, vemos que a gestão da água não é feita para priorizar as populações. Se sabemos que o Ceará já é vulnerável às crises hídricas, que existe escassez de água, que a perspectiva é de que esse cenário piore, que a água se torne menos disponível, temos que pensar também que não dá para ter indústrias e termelétricas que consomem uma quantidade tão grande de água em detrimento do uso da população para subsistência. Precisamos rever essas políticas locais. Com relação à desertificação, o processo acontece quando o solo e o ecossistema do entorno são desgastados pela ação humana, seja pelo sobrepastoreio, quando se coloca muito animal para pisar o solo, que fica desgastado, seja pelo desmatamento, seja pelas queimadas. Você quebra a resiliência do solo. Uma área que é semiárida sai desse estado e passa a ser árida. Em vez de ser caatinga, vai virar deserto. E as mudanças climáticas vão piorar esse processo de desertificação. 

Juliana // Por que ainda é difícil sensibilizar a maioria das pessoas sobre questões ambientais e como trazê-las para o centro do debate?

Beatriz // Acho que é questão de linguagem. Os ambientalistas, as pessoas que compreendem sobre problemáticas ambientais, muitas vezes, têm perfil técnico, vêm da academia, falam uma linguagem que não dialoga com os anseios da população. Não é que as pessoas não entendam a importância do meio ambiente. O problema é que não temos o cuidado de falar da forma que as pessoas compreendam. Mas é também uma guerra de narrativas.

O Bolsonaro não chega falando “eu vou promover o desmatamento”, de maneira tão direta. Ele fala que precisamos promover o desenvolvimento do Brasil por meio do agronegócio, ou então fala que indígena não precisa de tanta terra porque indígena é folgado. Quando ele é acusado de desmatamento, diz que é mentira. Ele não fala “é, foi uma conquista do meu governo, aumentamos o desmatamento”, porque sabe que ninguém quer ver o aumento de desmatamento

A direita bolsonarista é muito boa de narrativa. Eles são muito bons em entender como a cabeça das pessoas funciona e explorar as fragilidades, os medos, os anseios, as emoções. Precisamos, do lado de cá, sair desse encastelamento e desse distanciamento. E saber dialogar com as bases sociais. No fundo, ninguém gosta de ver árvore caindo ou animal sofrendo. Por que queremos a floresta em pé? Por que queremos uma cidade mais igualitária, mais bem planejada? Por que queremos um semiárido em que as pessoas tenham condições de ficar na sua terra, produzir e ter acesso à água? Acredito que existe muito espaço para contra-atacarmos e promovermos a nossa narrativa. Quando você luta pelo meio ambiente, você luta por todo mundo. Quando luta por direitos sociais, luta por todo mundo. A nossa pauta é muito popular. Só precisamos fazer com que a população compreenda isso. Vamos dialogar para mostrar que essa luta é de todo mundo e que beneficia todo mundo.

Juliana Diógenes

Jornalista pós-graduada em Jornalismo Literário. Foi repórter no jornal O Povo e no Estadão. Já fez trabalhos freelancer como assessora de comunicação, produtora, redatora web, copywriter e revisora. É mestranda em Educação para Mudanças Climáticas e Sustentabilidade na Universidade do Porto (Portugal).