Bemdito

‘Mais do que professores apaixonados, educação requer investimento’

Doutoranda em Educação na Finlândia, Laís conta por que o sistema educacional no país é modelo e quais as diferenças em relação ao Brasil
POR Juliana Diógenes
Foto: Arquivo Pessoal

Que tal ter na escola 15 minutos de intervalo entre as aulas, tempo em que a criança e o adolescente seriam obrigados a sair da sala para brincar, descansar, conversar?

Já imaginou se todos os diretores das escolas públicas fossem também professores nessas instituições?

Essa é parte da realidade nas escolas públicas da Finlândia, país que é referência mundial na educação básica.

Foi para o país nórdico que a psicóloga cearense Laís Oliveira Leite se mudou em 2016 para cursar Mestrado em Educação na Universidade Eastern Finland (UEF).

Ainda no país, hoje é doutoranda em Educação e também consultora em uma edutech (empresa que desenvolve tecnologia educacional) finlandesa, que cria softwares educativos para o Ensino Superior.

Em conversa sobre o lugar da educação no Ceará, no Brasil e na Finlândia, a psicóloga diz que é injusto comparar a educação básica entre os dois países. E defende: só uma boa gestão de poucos recursos ainda não é suficiente.

Laís conta ainda os “segredos” que tornaram a Finlândia uma referência na educação básica. Um spoiler: independentemente de ter governo de esquerda, centro ou direita, o país continuou investindo em educação de qualidade.

Os professores são engajados politicamente, além de ter formação criteriosa e rígida. E mais: todos os políticos se comprometem com a pauta da educação.

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Juliana Diógenes // Como é sair de uma cidade na altura da Linha do Equador para morar no Círculo Polar Ártico?

Laís Oliveira Leite //
Uma experiência radicalmente oposta. Na Linha do Equador, você tem sol o ano todo. Aqui, você tem sol durante o verão, quando o verão é bom. Mas de fato você tem seis meses de inverno. É uma diminuição de exposição ao sol tremenda. E isso afeta tudo: desde o efeito biológico da falta de vitamina D e da falta de sensação de luz na pele, até o efeito que isso tem, psicologicamente. Todo ano tenho um pouco de depressão sazonal. Fico muito sensível, choro mais, tenho mais conflitos. Obviamente, isso afeta as minhas relações sociais. Fico mais insegura para me relacionar com as pessoas, saio menos. No Brasil, acho que sou uma pessoa muito sociável, muito alegre. Quando cheguei aqui, as pessoas diziam que, quando eu chegava na sala, parecia que trazia o sol. Sempre escutei que sorrio muito, que o meu sorriso marca as pessoas. Com o tempo, não escuto mais isso, porque a minha energia foi drenada pelo inverno e pela escuridão daqui. No aspecto social, é uma experiência oposta também, porque o Brasil tem uma diversidade de cor de pele, de cultura, de etnia. De música e comida. A gente sabe que a diversidade gera conflito para uma sociedade altamente homogênea, como a finlandesa. Aqui as pessoas têm o mesmo tom de pele, olho, cabelo, a mesma altura, o mesmo tom de voz, ouvem o mesmo estilo de música, comem o mesmo tipo de comida. Então, é radicalmente oposto. Muito sol, muita diversidade no Brasil. Pouco sol, quase nenhuma diversidade na Finlândia.

Juliana // Você é uma brasileira que atua como consultora em educação numa empresa finlandesa. Como funciona esse trabalho?

Laís // A Finlândia é conhecida mundialmente pelo sistema de educação básica das escolas. As universidades são muito semelhantes, não existe essa questão de disparidade de ranking nacional. Por causa da formação de qualidade nas escolas básicas, esses universitários têm uma autogestão e uma autonomia que encaixam muito bem no sistema universitário aqui. Os estudantes têm muita autonomia para desenvolver e escolher os cursos, o plano de estudo personalizado que querem, e isso inclusive é um estranhamento para os estrangeiros. A Eduix lidera um consórcio com outras universidades parceiras e desenvolveu um sistema que acompanha o processo educativo dos estudantes do começo ao fim, em todos os aspectos. Desde o currículo à organização da grade curricular, o sistema consegue administrar e planejar os processos educativos, desde o financiamento até a questão do gasto de energia elétrica, de reserva de sala, de agendamento de aulas. Recentemente, a empresa lançou um produto que ajuda no processo de escrita da tese de Mestrado. Essa plataforma está sendo usada por cada vez mais universidades finlandesas. Neste outono, lançamos um programa que tenta entender quais as competências que o universitário já tem, as competências que quer aprender e, baseado nesse perfil, vai recomendar quais cursos se encaixam melhor, para o estudante ter um guia de como fazer esse plano individualizado de aprendizagem. Aqui os estudantes têm muita autonomia, então desenvolveram esse produto para facilitar o processo de decisão usando Machine Learning e Inteligência Artificial. Os produtos se alinham com o que quero, com princípios educativos e a formação pedagógica que tenho e que esse país tem condições de colocar em prática. Porque se eu colocar um professor finlandês numa sala de aula no Brasil, ele está perdido. Acabou. Mas se eu colocar um professor brasileiro numa sala de aula finlandesa, sem problemas.

Juliana // Por quê?

Laís // Acho que o professor brasileiro teria resultados educativos inimagináveis. Mas o sistema educativo não se faz por utopia ou só por professores apaixonados por educação. Se faz com investimento constante, se faz com linha política independente de partido ou governo, e se faz com um sistema de desenvolvimento.

Juliana // A Finlândia continua entre as principais nações no ranking educacional do Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (PISA). Por que o país se destaca tanto no quesito educação?

Laís // Tudo começou com esse resultado surpresa para o mundo em 2000 no PISA. Os finlandeses estavam muito surpresos. Houve também a continuidade desses resultados nos cinco anos seguintes.

Não foi sorte de iniciante. A Finlândia estava consistentemente produzindo resultados nesse exame internacional. O governo pegou esses resultados e transformou numa logo. Percebeu que podia ser uma jogada muito boa de marketing. Mas o marketing não é baseado em palavras superficiais. Eles embasam todo um marketing no sistema de educação da vida real. Esse destaque que a Finlândia tem no mundo aconteceu por investimento pesado que o país quer que o mundo saiba. Tem toda uma mão de obra envolvida para gritar que eles têm um dos melhores sistemas de educação no mundo. Porque eles têm

O país começou uma reforma educativa nos anos 60 e 70, quando chamou muitos experts em educação, principalmente dos Estados Unidos, para dar consultoria para o governo da época. O governo já estava engajado numa reforma política e educativa. Outra diferença é que mudou governo, mudou partido, mas eles consistentemente continuaram investindo na melhoria da qualidade da educação. Independentemente de ser governo de esquerda, centro, direita, continuaram investindo num processo de educação. Esse investimento passou pelo crivo de líderes universitários, pesquisadores, professores e educadores. Esse processo de melhora educativa foi de baixo para cima e de cima para baixo. Além disso, a Finlândia tem uma comunidade de professores com poder político forte, isso influenciou. E também os políticos aqui estão muito próximos disso.

Juliana // Bem diferente do Brasil, né.

Laís // Uma das diferenças entre o Brasil, que interfere nesse processo de decisão de cima para baixo e de baixo para cima, é que, além de 99% das escolas serem públicas, todos os diretores das escolas finlandesas dão aula. Em 20 a 30% do tempo, eles são professores das salas deles, estão no chão das escolas e sabem quais são os problemas. Estão na ponta dando aula e na ponta tomando decisões. Essa organização quase não hierárquica de quem toma as decisões sobre investimento ajudou muito. Desde 50 a 60 anos atrás, a Finlândia tem o National Core Curriculum, um documento oficial desenvolvido por experts, que são pesquisadores, professores universitários e representantes políticos. Essa comissão desenvolve um currículo, que é atualizado a cada cinco anos e serve como guia para todas as escolas. Porém, as escolas têm total autonomia de como implementar esse documento oficial. Elas têm o seu currículo próprio. E o país não tem exame nacional para saber se a escola está aplicando. Aí vem outra diferença entre Finlândia e Brasil. Existe aqui uma relação de confiança. Confiança é uma palavra que faz muito sentido. Vai desde o sistema nacional de curriculum, até a implementação nas escolas, desde o direito no chão de sala de aula, trocando experiência com os professores, até a relação com os estudantes. Os professores dão muito mais autonomia aos estudantes. Esse conceito “confiança” é literalmente aplicado no sistema de educação.

A Finlândia é um dos países com o fator ‘confiança’ como um dos maiores do mundo. Aqui se você deixou cair uma coisa na rua, pode voltar que vai estar lá. Muito do funcionamento público é baseado na confiança

As pessoas vão pagar porque sabem que precisam pagar. Vão fazer o que precisa ser feito. Porque estudaram isso na escola. As crianças estudam o sistema de imposto, de votação, o que está por trás das decisões políticas. Eles estudam, sabem os impostos que estão pagando. Sabem para o que serve e, obviamente, têm um retorno de investimento. Pouquíssima taxa de violência, não tem roubo aqui.

Juliana // Praticamente, não deve ter corrupção também…

Laís // É. Na crise de refugiados, com o processo de imigração, teve um conflito de cultura e racismo. A Finlândia também não é um país perfeito. Joensuu era um dos berços do neonazismo nos anos 90. Teve uma relação com o nazismo? Teve. Porque é uma sociedade tão homogênea, que tem dificuldade com o diferente. Os professores não sabiam o que fazer com crianças que não falavam inglês ou finlandês. Não tinha pessoal para ajudar essas crianças que falavam outras línguas. Mas é um sistema que se adapta porque tem investimento, estrutura e pessoal.

Juliana // E quais são as principais discrepâncias entre o sistema educacional na Finlândia e no Brasil?

Laís //
Uma das principais diferenças é que nas escolas públicas e na universidade há um ambiente bem informal. A hierarquia é quase inexistente. Isso já traz um relaxamento das pessoas em forma geral. Não se precisa pisar em ovos para se falar com adultos ou com uma pessoa que ocupa algum cargo.

Outra diferença: entre uma aula e outra, sempre tem 15 minutos de intervalo. E, principalmente, com crianças do 1º ao 6º ano, não deixam a criança ficar na sala de aula. Colocam a criança lá para fora durante esses 15 minutos, para correr, brincar no celular, conversar. A criança sai da sala, fica no playground e volta. Isso tem um impacto educacional fundamental

Além disso, como falei, os diretores são professores. Estão no chão da sala de aula todo dia, em contato com os estudantes. Outra diferença fundamental: para ser professor, é altamente competitivo. Só os melhores entram nos cursos de educação. E aqui não é só um exame que tem as questões fechadas e abertas que, dependendo da nota, entra ou não. Tem esse exame, mas tem esse processo de entrevista, e tudo isso para entrar na universidade. Eles são muito criteriosos em relação a quem vai começar a estudar para ser professor. A formação aqui é muito boa, baseada em pesquisa, evidências científicas. Isso reflete também nas escolas daqui. O que acontece é que aqui não existe uma escola que implementa educação freireana, outra que aplica montessoriana… Eles implementam o que funciona, de acordo com evidências científicas, e vão colocar essas demandas no National Core Curriculum, que todas as escolas têm de seguir, mas implementam como quiser, e têm total autonomia para fazer isso. Os professores têm uma voz muito forte nessa implementação local e em sala de aula. Os professores estão implementando os projetos que eles querem da forma que eles querem. Eles confiam porque esse querer do professor é baseado em formação profissional, tem pesquisa, leitura, experiência e coloca o estudante como fator central. Todas as universidades de pedagogia têm uma escola associada e essa escola é um laboratório. É geralmente a escola de ponta daquela região e é uma escola em que os professores são educadores, que trabalham junto com os professores universitários. Os professores têm Doutorado ou são estudantes de Doutorado, e é obrigatório passar por essas escolas de laboratório. É um processo muito consciente e muito cuidadoso. 

Juliana // É um país que precisa estar aberto para a inovação contínua e ter investimento na área…

Laís // Existe um consórcio de universidades finlandesas que exporta o modelo de educação finlandesa. Eles dão cursos e workshops. Têm uma metodologia. Exportam e trazem muito. Isso é business. E para que ele continue acontecendo, a Finlândia precisa ser inovadora. O governo da Finlândia traz grupos de visitantes para mostrar as escolas de treinamento, as de laboratório e de formação. São as escolas de ponta, que têm uma arquitetura incrível. Os estudantes não pagam. A escola oferece material de alta ponta. Aulas de robótica, programação, um ambiente estilo Facebook e Google. Cadeiras dispostas com muita dinâmica. Sala com parede móvel que, quando abre, vira um vão enorme. Teatro que vira playground. Tem academia, área de escalada.

Faz sentido que tragam para essas escolas de ponta, é a estratégia de marketing. Mas o que seria mais poderoso era mostrar a escola rural, em que vai ter 10 mil pessoas e a escola vai ser tão boa quanto. Os professores são altamente qualificados, os estudantes vão aprender no mesmo nível do que naquela escola de ponta

Vai ter todos os materiais de qualquer escola. E se não tiver o material, é só pedir para o governo, que ele vai fornecer. Isso eu acho poderoso. O governo até faz visitas para escola rural, mas podia ser mais radical nesse sentido e mostrar que até as escolas no meio do nada vão entregar resultado que não vai gerar disparidade de performance educativa. Isso é o louco do sistema. Não tem estudante atrasado demais. As disparidades educativas são poucas.

Juliana // Como você soube que queria estudar Educação no curso de Psicologia?

Laís // Meus pais são professores universitários. Eu e minha irmã dizíamos que íamos ser de tudo menos professoras. Vendo a rotina de trabalho, o movimento, o engajamento… Era demais. A gente tinha se comprometido que podia ser tudo menos professora. Entrei para a psicologia, minha irmã, para veterinária. Passa o tempo, as duas estão fazendo doutorado, uma em educação e a outra, com carreira acadêmica. A educação sempre esteve presente na minha vida. No curso de Psicologia, não consegui ir para nenhum outro lado que não a educação. Educação era uma vocação.

Fui achando mais interessante, me envolvendo em mais pesquisa de psicologia educacional. Me interessava mais na rotina da escola. Porque tem tanta coisa para se mudar e melhorar, principalmente no Brasil. Então, o interesse foi alimentando uma pesquisa, a pesquisa foi alimentando um interesse

Fui para a Alemanha, no Ciência Sem Fronteiras, e vi outra perspectiva da psicologia escolar. No Brasil, estudamos educação por uma perspectiva social e crítica. Enquanto na Alemanha, uma psicologia cognitiva, estatística. Uma coisa complementou a outra muito bem para mim, e isso aumentou ainda mais o meu interesse. A educação que tive também despertou ainda mais interesse em pesquisa nesse sentido. Para fechar o lacre e cravar que era educação mesmo, foi depois que terminei a graduação, quando comecei a trabalhar em um projeto de aprendizagem cooperativa, numa ONG que tinha um trabalho associado com a UFC, e que tinha cofundado uma escola no interior do Ceará, em Pentecoste. Nessa escola, a metodologia principal era a aprendizagem cooperativa. Isso fechou a minha vocação para a educação. Foi uma evidência prática que pude viver para constatar como vários aspectos da educação podem ser implementados de forma que gere sucesso, aprendizagem, não só cognitiva, mas emocional, para um bem-estar, ou seja, uma educação que ajuda os estudantes a trazer competências de trabalho em equipe e gestão, tanto para a vida pessoal, quanto para a profissional. Essa experiência foi muito marcante para decidir que queria trabalhar com educação. Saí da escola por péssimas condições de trabalho…

Juliana // Falta de investimentos?

Laís //
Principalmente por falta de financiamento da ONG, mas que, numa perspectiva maior, é a falta de financiamento em educação. Embora o Ceará seja um ponto de referência para uma gestão política em educação que gerou transformações e trouxe o estado para o topo, ainda assim, tem falta de investimento. Só uma boa gestão de poucos recursos ainda não é suficiente. Além das condições de trabalho, você encontra desafios, começa a querer saber e aprender mais. Então pensei: quero aprender mais para dar conta desses problemas.

Decidi fazer mestrado num país mundial de referência, não no sentido de ser referência no PISA. Claro que ocupar o topo do PISA chamou atenção. Mas quando você estuda um pouco mais o sistema de educação finlandesa, nota que o país dá atenção a uma educação holística, que prioriza o bem-estar, a educação centrada no estudante. Pensei: quero ir para a Finlândia, não pelos resultados cognitivos, mas por ser um sistema que realmente coloca em prática princípios educativos que bebem da fonte do Paulo Freire

Muitos cursos que fiz aqui têm Paulo Freire na bibliografia e seguem princípios pedagógicos humanos, de psicologia positiva. Como se coloca isso na prática? Não numa escola pública, que é um laboratório experimental do governo, que é o caso da escola em que eu trabalhava, mas num sistema público de educação a nível nacional? Aí eu quis vir para ver com os meus próprios olhos. 

Juliana // É curioso pensar que Paulo Freire é referência na Finlândia, um país com a educação básica tão exemplar, mas o próprio país de origem de Freire tem dificuldades em melhorar a qualidade da educação e por vezes até o despreza, né? Como é para você pesquisar educação fora do Brasil?

Laís //
Estava discutindo isso com um colega do Afeganistão. Fiz exatamente essa pergunta pra ele. Porque ele é como uma elite intelectual, um refugiado, que saiu para buscar melhores condições de vida e emprego. Ele está aqui e o país dele, quando mais precisa dele, é o que menos o quer lá, por vários motivos. Obviamente, Brasil e Afeganistão estão em situações políticas totalmente diferentes. Não estou querendo fazer um paralelo. Fiz uma questão a ele que também coloco para mim. Somos uma elite intelectual que está saindo do Brasil por falta de condições próprias. As universidades federais formam profissionais de alta qualidade, mas o Brasil não tem condições de reter esses profissionais. Com a situação política agora, ainda mais. Atualmente, o nosso governo não acolhe profissionais de alta qualidade na área de humanas. Tudo bem que a área de humanas sempre foi relegada, mas muito mais agora. Então, definitivamente, está acontecendo um brain drain (fuga de cérebros). Penso todo dia sobre a contribuição que quero dar ao Brasil. Falo isso para os meus chefes. Tenho compromisso pessoal com a educação no Ceará. Da forma como o meu trabalho na Eduix possa chegar até lá, vou lutar para esse caminho.

Juliana // Falando nisso, você trabalhou como psicóloga numa escola estadual no Ceará e hoje circula no ambiente educacional da Finlândia. Quão discrepantes são essas realidades?

Laís // A experiência que tenho de escola pública do Ceará é ótima, incrível, de referência. Era uma escola técnica. O espaço era muito bem organizado, as salas de aula eram ótimas, e tinha toda a organização da sala de aula de acordo com a aprendizagem cooperativa. Tinha gente muito engajada na comunidade. É claro que tinha problemas típicos de uma comunidade do interior pobre do Ceará. Pode imaginar as piores coisas de uma cidade do interior, que elas estavam lá. Mas em termos de infraestrutura, de qualidade dos professores, de material escolar, tenho uma experiência ótima. Comparar com a Finlândia é injusto. Porque a infraestrutura que vai ter no Ceará é completamente diferente. Em relação ao sistema educativo do Ceará, sabemos que tem muita pobreza. Primeiro, em muitas escolas, tudo é gradeado. Você não tem acesso, a não ser com permissão de um adulto. Tem todo um processo burocrático para conseguir alugar um livro na biblioteca da escola, por exemplo. Tem a grade da biblioteca, das salas de aula, da cozinha. A quadra, que na verdade era um terreno, não era coberta. Parecia que os professores não queriam estar ali, e eles estavam usando recursos pedagógicos ultrapassados, mesmo tendo pesquisas mostrando que não eram mais para estar usando. Mas ainda estavam. É uma disparidade sistêmica que não dá para falar. No final de 2015, teve a ocupação dos estudantes nas escolas estaduais e fui dar um workshop. Os estudantes, que estavam com as chaves das escolas, me mostraram um depósito com instrumentos de música, notebooks, que eles nunca viram. Um material que nunca foi usado. A administração tinha medo que, se o aluno usasse, quebraria. “Os meninos não vão saber usar”, a escola dizia. E faz parte, porque é um recurso tão precioso, que a escola não quer quebrar, aí protege o recurso. Assim, inverte completamente a lógica, que é ensinar os meninos a usar aquilo. Aqui nas escolas, cada estudante ganha um tablet que leva pra casa. 

Juliana //  Se o Ceará quisesse se espelhar no modelo educacional finlandês, por onde teria de começar?

Laís // De forma sistêmica. Não tem uma porta de entrada, são várias. Essa porta de entrada vai envolver vários fatores. Inclusive, sindicatos fortes. Tem pesquisas que mostram o efeito de sindicatos ativos impactos na aprendizagem dos estudantes, ali na ponta. Vai desde o fortalecimento de sindicato de professores a um investimento muito pesado na formação de professores.

Num país como o Brasil, deveria ser dada maior autonomia dos estados para essas decisões, para localizar cada vez mais as decisões administrativas, aumentar investimento e melhorar o uso do investimento. Os municípios já têm certo orçamento, mas dá pra melhorar o investimento desse dinheiro que já tem. Porque muitas vezes esse investimento é colocado onde não tem impacto na aprendizagem do estudante.

E melhorar também a distribuição do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). Aumentar, melhorar eficiência e distribuição. Dar mais para quem precisa de mais e menos para quem precisa de menos.

Juliana Diógenes

Jornalista pós-graduada em Jornalismo Literário. Foi repórter no jornal O Povo e no Estadão. Já fez trabalhos freelancer como assessora de comunicação, produtora, redatora web, copywriter e revisora. É mestranda em Educação para Mudanças Climáticas e Sustentabilidade na Universidade do Porto (Portugal).