Bemdito

O custo da negação da política

Ao buscar incutir a ideia de que as instituições brasileiras não funcionam, Bolsonaro quer esvaziar a política e silenciar a pluralidade
POR Paula Vieira
Foto: Alan Santos / PR

Tenho pensado em como a rejeição à política tem reverberado. A expressão “politizar” tem sido usada com alguma frequência, como se o fazer política fosse algo negativo. Em reforço à rejeição, nas últimas semanas acompanhamos, ainda, ataques de Jair Bolsonaro e seus aliados contra as instituições brasileiras em funcionamento. 

Inquieta com a permeabilidade dos discursos antipolítica, estou aqui para pensar, como se falasse comigo mesma em voz alta, sobre o entendimento do que é política em uma democracia. 

Indivíduos possuem visões de mundo diferentes e podem formar grupos de interesses. Isso significa que há conflitos. E veja como o conflito pode ser interessante: significa que há liberdade para se posicionar. 

A vida coletiva, entretanto, conduz a situações de busca de consensos. E é aqui que parece ter um entrave. Embora produzir consensos seja parte da política, há uma tentativa de que exista uma neutralidade. Como ser neutro quando estamos diante de interesses conflitantes?  

Quando saímos da percepção individual de quem exerce poder sobre quem, para quem decide questões coletivas, chegamos no que consiste “políticas de governo”, “políticas de saúde”, “políticas de educação”, “políticas de emprego e renda”. Significa, portanto, que estamos diante de como são formadas as decisões a serem aplicadas ao coletivo de indivíduos – e nele todas, todos e todes estão inclusos. 

A máxima de que a política está nas relações cotidianas, que impactam diretamente em nossas vidas, implica que as relações sociais são permeadas de poder. O entendimento de poder, por sua vez, implica que há pessoas ou grupos que exercem influência sobre outros. Ou seja, refere-se ao direcionamento de decisões. 

No processo decisório, as práticas políticas nas instituições democráticas possuem um direcionamento baseado em um primeiro consenso, ou seja, regras e normas que constituem o jogo político. Desse modo, é possível que os interesses plurais busquem a defesa de suas ideias e de seus direitos. 

Então, para disputar direitos nas instituições, por vezes antagônicos, é necessário ter regras. O processo eleitoral, por exemplo, é o momento em que os interesses diversos são apresentados como adversários legítimos e, portanto, a base é a discordância. Em competição, não há neutralidade. Há preferências que são expressas segundo a racionalidade produzida por quem a manifesta. 

As regras nem sempre colocam os diferentes grupos em condições iguais para a competição política que, ao ocupar os espaços de poder, fica diante da possibilidade de defesa de seus direitos. Os grupos de interesses que buscam ocupar esses espaços pressionam para que as relações de poder sejam transformadas. Os que já ocupam resistem porque compreendem que, se entrarem em consenso, a consequência será a perda do espaço. 

Aqui, retorno à reflexão inicial sobre a rejeição à política como um custo à democracia. Ao buscar incutir a ideia de que as instituições brasileiras não funcionam adequadamente, Jair Bolsonaro e seus aliados não têm o intuito de dar mais transparência aos processos decisórios, sejam eles eleitorais ou de política de governo. Pelo contrário. 

A busca é por retirar a legitimidade do consenso mínimo já existente e, consequentemente, esvaziar a política como lugar de antagonismos e conflitos que são intrínsecos às diferenças da sociedade. O posicionamento neutro, assim, constitui um fator que deslegitima a política e corrobora para a tentativa de silenciar a representação plural.  

A defesa de uma neutralidade como única racionalidade não é real. Esquece que, além de conflitos, a política exige consensos. Estes, por sua vez, só podem ser produzidos se existir o antagonismo, a pluralidade. Do contrário, será apenas reprodução de poder.

Paula Vieira

Doutora em Sociologia e professora da Unichristus. Integrante do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (LEPEM). Pesquisa sobre instituições políticas brasileiras com ênfase na dinâmica do Legislativo.