Bemdito

Para todos os corpos: a dança

Ao final de “Dirty Dancing”, uma prece corporal eleva o espectador em busca de êxtase e salvação
POR Olivia B. de Avelar

Sétima semana de clube do filme. Em agosto de 2020, já convivíamos com o isolamento social há cinco meses. Muita coisa fazia falta – difícil era colocar tantas ânsias em ordem de prioridades -, não porque não soubéssemos o que deixava vazios gigantescos em nós, mas porque era difícil equilibrar vontades tão corriqueiras e pequenas com as perdas e dores profundas e irreparáveis que sabíamos estarem cortando o mundo.

“Sinto saudade de dançar. Saudades das festas que fizemos juntas. Das playlists elaboradas em conjunto, semanas antes dos encontros”. Fazia falta dançar. Fazia falta querer dançar sem culpa, sem peso, sem uma súbita descarga gelada que percorria o corpo cada vez que me pegava desejando coisas banais. Era como querer dançar à beira do abismo e, apesar de absurda, a imagem assustadora ganhou contornos de beleza.  Afinal, como acreditar em um Deus que não dança?

O filme Dirty Dancing – onipresente nas listas de filmes mais marcantes e queridos de muitas gerações de apaixonados pelo cinema da sessão da tarde – deu o ritmo e a melodia daquela semana. Cada movimento na tela – Baby aprendendo os passos com Johnny e fortalecendo a fibra física de seu corpo, enquanto se tornava a porta estandarte de suas próprias vontades e ilusões –  nos deixava dançar com os olhos, com o desejo, com a imaginação.

Existem corpos que são permitidos de dançar. Ao som da música, podem criar arabescos no ar com seus braços e pernas. Podem deslocar o vento com seus movimentos. Podem sustentar-se em saltos altos como se dessem à luz a uma nova qualidade de ser – fluido e feito de ângulos, intrigante e hipnotizador.

Tamanho poder sobre si mesmo: ao dançar, controlamos nossos movimentos ao ponto dos passos da coreografia ganharem forma sem que os movimentos sejam ponderados e antecipados de forma intencional – o corpo bebendo direto da fonte do inconsciente e distribuindo o profundo e o abstrato como espetáculo.

Tamanho poder sobre os outros: um corpo que dança se transforma em ímã de desejo, inveja, admiração, deslumbramento. É o feitiço encarnado. Um corpo que dança e seduz para si, para a continuação do seu próprio prazer, é mais poderoso do que um corpo em batalha que derrota e subjuga para o gozo e a glória alheios.

Mas existem muitos corpos que são proibidos de dançar. O corpo da pessoa pobre tem dono e sua centelha de vida é forçosamente destinada, somente, ao trabalho e à produção. Quando, de teimoso, o pobre dança, o faz ao som da música de sirene das viaturas que protegem os outros corpos – aqueles poucos que repousam à sombra do suor dos muitos.

Um corpo de mulher preta. Um corpo gordo. Um corpo velho. Um corpo que depende da acessibilidade que nunca chega. Um corpo marcado por bisturi. Para todos os corpos: a dança. Livre do lucro. Despida da vergonha. Só o puro, simples e belo poder sobre si mesmo e sobre a carne e os ossos que habitamos e que, tantas vezes, não nos deixam governar.

Ao final do filme, liberada da culpa, dancei de tristeza, com gestos de dor. Porém, com gestos/pedido e passos/chamado – como as danças místicas que invocavam a chuva e os tempos amenos que abençoavam as plantações e colheitas fartas. Dancei pedindo por dias vindouros de festejos e alívio e pela companhia, ao meu lado, do corpo e da alma daqueles que amo.

Na minha prece corporal, uma intenção por todos os corpos que deixaram o baile da vida antes da hora. Se cada corpo fosse um país livre, dançaríamos ao som dos hinos nacionais, e as armas e as artes da guerra seriam a música, o ritmo, a coreografia e a sedução. Na religião do corpo, dançar é a agonia, o êxtase e a salvação.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.