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Reencontrar corpos, falar com os mortos #2

Segundo capítulo da série sobre o cinema japonês pós-Tohoku traz reflexões sobre Voices in the wind, filme de Nobuhiro Suwa
POR Cauby Monteiro

Segundo capítulo da série sobre o cinema japonês pós-Tohoku traz reflexões sobre Voices in the wind, filme de Nobuhiro Suwa

Cauby Monteiro
cauby.ecm@gmail.com

Continuando o nosso percurso de construir um pequeno panorama da recepção e influência do desastre de Tohoku no cinema japonês, lidaremos nesta coluna do filme mais recente de um dos mais importantes – e ainda pouco conhecidos – cineastas japoneses: Nobuhiro Suwa.

Suwa surge nos anos 90 como uma espécie de voz dissonante do cinema japonês feito no período. Sem aderir à produção do cinema de gênero nem se engajar no cinema afetuoso – muitas vezes juvenil e fantasmático – de seus contemporâneos, ele dirige dois filmes maduros, que estão mais relacionados ao cinema japonês clássico, de Ozu ou Naruse, do que as interseções com a cultura pop ou com o novo momento político social do país. 2/Duo e M/Other – e posteriormente H Story, o complexo retrato de sua cidade natal Hiroshima, a partir da sombra da tragédia e do que ela implica, o que inclui o próprio Hiroshima, mon amour, filme de Alain Resnais e roteiro de Marguerite Duras – fizeram-no conhecido no Ocidente e impulsionaram sua carreira na França, de onde ele retorna somente agora, para lidar, agora sim, com os fantasmas e ausências que compõem esse Japão pós-Tohoku.

Como bem salienta Miguel Blanco Hortas, Suwa, que antes era a alternativa ao cinema japonês “dos filmes geracionais de diretores como Hirokazu Koreeda, Shunji Iwai, Shinya Tsukamoto, Ryuichi Hiroki e tantos outros cineastas que mostravam o silencio e o distanciamento de um novo Japão, dominado pela tecnologia e o esquecimento das velhas tradições, que pareciam ser quase fantasmas”, agora parece “reciclar a herança daquele cinema geracional dos anos 90, curiosamente agora que a maioria daqueles diretores o abandonaram por completo”. É como se Voices in the wind fosse um filme em que se colocar nessa posição de afeto, de construção amorosa e compreensível dos personagens fosse imperativo, e aquele distanciamento de outrora não se encaixasse mais, especialmente dado ao tema e à narrativa do filme.

Seguimos Haru, uma colegial que vive com sua tia em Hiroshima, depois de ter perdido os pais e o irmão na tragédia de Tohoku. Depois que sua tia fica doente e precisa ser internada, ela parte em viagem em direção à periferia de Iwate, onde morava durante o desastre. Suwa então utiliza-se desse modelo de road movie, para seguir com sua câmera Haru e todas as pessoas que ela encontra pelo caminho. O desenvolvimento do filme será simples, quase como um pequeno romance de formação típico, em que a personagem precisa encontrar outros personagens que a farão crescer. A questão aqui é como Suwa retrabalha esse clichê em direção a um sentimento de constante perda. Cada personagem não adiciona uma forma de resiliência e ensina a Haru que vale a pena continuar vivendo apesar de tudo. Todos esses encontros são marcados pela dor e pela ausência de alguém que não está mais lá, por qualquer motivo que seja. Logo no início do filme, Haru é resgatada por um trabalhador, após desmaiar em um terreno destruído em que ficou chamando em vão pela sua família. Ele a leva para sua casa, onde mora com sua mãe, já senil e com problemas de memória. Ela confunde Haru com Ayako, sua filha falecida há mais de dez anos. Seu filho explica isso e vai além, falando de outras tragédias pessoais, como a morte do pai em seguida e a sua mulher que o abandonou levando seus filhos. Explica que o lugar onde ele encontrou Haru foi fruto de um deslizamento de terra causado pela chuva que destruiu os arredores, poupando poucos lugares, como a casa onde mora com a mãe. De repente, a mãe recupera a lucidez por um momento e conta uma história terrível de quando era criança em Hiroshima. O relato impulsiona Haru a contar a sua história. É como se o diálogo só pudesse ser estabelecido desse jeito, através da linguagem da perda e da tragédia, e a coragem de lidar com seus próprios demônios viesse de conhecer o demônio do outro. O que liga uma jovem colegial a uma idosa senil é a memória do desastre e da ausência. É uma história sobre estar e permanecer, apesar dos que não estão, e desse peso que a ausência coloca sobre essas pessoas.

São vários os encontros posteriores, dos mais singelos, como a do irmão e a irmã grávida que a acolhem por um momento e mostram como é possível viver em família apesar de tudo. Há os mais duros, como quando ela encontra a família de um refugiado curdo, que ajudou a salvar pessoas durante o tsunami, mas hoje encontra-se detido pela imigração. É outro momento de conexão através da dor e da perda, especialmente quando ela conversa com uma menina curda da sua idade, como adolescentes conversam, e ela mostra uma foto de sua família, quase que completamente corroída e desbotada. Logo em seguida, sabemos que não apenas a família dela morreu no tsunami, mas que os corpos não foram encontrados. É a dor maior da quase não existência, de uma memória cuja carnalidade anterior foi explodida, não é nem os corpos que marcam o solo em Hiroshima, é o nada. Essa ausência abre espaço para a mente pregar peças, como no momento em que ela parece rever a sua família em uma casa abandonada de outra pessoa que também perdeu a família no desastre. Os fantasmas não podem descansar – nem a melhor amiga dela na infância de quem ela soltou a mão na hora do desastre, perdendo-a para sempre. Só resta pedir desculpa à mãe da amiga, mesmo sem culpa, pedir desculpa à memória dos mortos.

No fim da viagem, temos a razão de ser do filme. Ela encontra um menino, alguns anos mais novo, que pergunta a direção para ela. Ele vai até um telefone público que, dizem, você consegue se comunicar com os mortos. Ela decide acompanhá-lo. Esse telefone existe de fato e foi objeto de um documentário, alguns anos atrás, que serviu de inspiração para Suwa fazer Voices in the wind. A cena final de Haru, falando com seus mortos ao telefone, num campo colorido, num belo dia de sol, é uma das imagens mais bonitas do cinema nos últimos 10 anos. É um plano longuíssimo, que, dirigido por outros seria algo quase cruel, devido à dor que perpassa a cena. Há um arcaísmo no momento, com uma cabine de outro século, uma ação (falar em um telefone público) que ninguém mais realiza. É uma conexão com o passado, com o que passou, com quem passou.

Voices in the wind é um filme estranho. De planos demorados, de personagens que falam tudo de si quando se encontram, de espaços forçosamente vazios e a necessidade de lidar com eles. De reencontrar os mortos depois de tanto tempo, de falar com esses espíritos que não deixaram corpos. Um filme sem vulgaridade e rico pela força de suas personagens, e pelo carinho e olhar de seu diretor.

Cauby Monteiro é cineclubista e cineasta.

Leia a primeira parte da série
Reencontrar corpos, falar com os mortos #1: It feels so good

Cauby Monteiro

Cineasta e cineclubista, programa o Maldita Cineclube e dirige filmes para a produtora Asilo Febril, onde também produz o podcast sobre cinema Debate Soberano.