Bemdito

Sex education

Uma discussão sobre sexualidade e censura a partir das obras de Bastien Vivès, Mikio Naruse e Stanley Kubrick
POR Cauby Monteiro
Trecho da HQ "Petit Paul", de Bastien Vivès

Não, este não é um texto sobre a série engraçadinha da Netflix. É um texto sobre algumas coisas que vêm me incomodando e que gostaria de dividir de alguma forma. Será um texto na primeira pessoa também, provavelmente um dos poucos aqui nesta coluna. Isso por um temor de deixar transparecer qualquer coisa que este texto não é: algo cientificamente embasado; algo que decida explorar a fundo um tema; enfim, qualquer coisa que fuja do pensamento simples e cotidiano, meio desestruturado.

Há dois anos ou talvez mais (estamos em 2020 ou 2021?), foi lançado na França o quadrinho Petit Paul, de Bastien Vivès. Era a continuação de Les melons de la colère, saído alguns anos antes, e que tinha como protagonista o personagem-título, irmão da personagem principal do anterior.

Bastien Vivès é muito conhecido e admirado na França e Europa, e recentemente desenhou um novo álbum de Corto Maltese, importante personagem criado por Hugo Pratt. Também ganhou reconhecimento no Brasil, especialmente pelas obras O Gosto do cloro e Uma irmã, e, mais recentemente, por Polina, obra de 2010 já adaptada para o cinema.

Seus temas variam, mas sua verve mais apreciada é a das histórias de relacionamentos juvenis, calcados na superações de traumas, amores platônicos e descobertas. Sua arte faz alguns leitores mais velhos torcerem o nariz pela escolha de priorizar o movimento em detrimento aos detalhes. Também faz quadrinhos de super-herói; de aventuras; já trabalhou com animação. E com quadrinhos pornográficos. E aí se encaixa Petit Paul.

Petit Paul é um menino de 8 anos com um pênis gigante, herança de seu pai também recebida pela irmã, com seios bem maiores que a média (daí o título do quadrinho que ela protagoniza). Mesmo já tendo em outras obras lidado com incesto, sexo com menores (Uma irmã, amado pela singeleza e realismo, mostra relações explícitas entre uma menina de 16 e um menino de 13), e já publicado uma outra obra em que vemos o próprio Petit Paul em ação (Les melons de la colère), acredito que um quadrinho com nome e formato infantil, protagonizado por um menino de 8 anos em situações sexuais foi demais para os franceses, que prontamente acusaram a obra e o autor de pedo-pornografia.

Nem o fato da obra ser vendida com a advertência de ser uma obra adulta para maiores de 18 anos a salvou de ser retirada das lojas. Houve uma extensa discussão, já cansada e cansativa, entre os defensores da liberdade de expressão e aqueles que acreditam que a mesma tem limites. No fim, Bastien Vivès foi visto como um escroto, mas sua carreira sofreu pouco e ele ainda é considerado uma das maiores forças do quadrinho francês.

Em busca do original
Lembro de na época ter ficado muito irritado com a situação. Havia devorado todos os álbuns do Vivès e considerava-o um dos melhores quadrinistas contemporâneos. Não conseguia crer que não poderia ler um de seus quadrinhos por causa de alguns carolas do outro lado do atlântico que decidiam o que era arte ou não, o que era bom ou não.

Me irritava muito ver alguns leitores defenderem a posição de censura da obra e outros, ao verem que eu defendia a obra e o autor, me acusarem de defender a pornografia infantil. Afinal, como poderia ser pornografia, no sentido moral da palavra (não no artístico ou no representativo) se eram só desenhos em um papel, só traços de nanquim em madeira processada?

Nenhuma criança foi usada como modelo, nenhuma criança foi filmada, nenhuma criança passou ou deveria passar perto daquele material. E ainda por cima não há nada que indique, até onde sabemos, que Vivès seja algum tipo de abusador em sua vida pessoal, diferente de vários artistas amados e com obras ilibadas moralmente. Por algum tempo, qualquer menção ao caso de forma a censurar o Petit Paul fazia meu sangue ferver.

Mas se existia algo que eu tinha em comum com os detratores da obra, especialmente com os brasileiros, era que nenhum de nós havia lido o álbum. Não achei que eu iria tão cedo, já que se tornou difícil e caro adquiri-lo. Mas a internet é essa mãe suprema que tudo oferece e há algum tempo tive acesso a dita cuja (curiosamente na mesma época em que o “bebê do Nevermind” havia decidido processar a banda por exploração sexual infantil).

Ao ler Petit Paul fiquei muito envergonhado de mim mesmo, por ter gastado tanta raiva com quem vociferava contra a obra. Era um livro besta, cercado de situações absurdas, como por exemplo uma homenagem ao filme Poltergeist, em que um ser sobrenatural toma possessão do pênis de Petit Paul, e transforma a cena mais famosa do filme em uma gag, na qual a televisão vira um falo feito de ruído eletrônico. Todas as histórias são puro besteirol, como afirma o tradutor de quadrinhos Pedro Bouça. Pior que levar aquilo a sério como algo digno de um dos piores crimes que o ser humano pode cometer, é levar a sério a pessoa que leva a sério. E desse crime sou culpado.

Um dos argumentos críticos utilizados para uma aplicação prática, não só moral, que aquela obra pode ter é o de que pedófilos podem usá-la, por ter crianças envolvidas — mesmo que em situações absurdas — para normalizar a pedofilia e convencer as crianças a se renderem com mais facilidade aos abusos. Mas, quando se chega ao ponto de um pedófilo mostrar a uma criança uma obra para maiores de 18 anos, algo deu muito errado antes. E se uma criança ver você fazendo sexo sem querer? E se ela ver um mendigo se masturbando na rua? Matamos o mendigo? Não vou me alongar nisso mas há uma fragilidade clara no argumento.

Cinema japonês
Spring awakens (Haru no mezame) é um filme menor e quase desconhecido do gigante cineasta japonês Mikio Naruse. Trata de um grupo de jovens adolescentes, meninos e meninas, que, em plena descoberta sexual, preocupam seus pais, dos mais progressistas aos mais conservadores, pelo que podem fazer quando estão sozinhos. Curioso notar que a preocupação é balanceada aos dois sexos, mesmo que penda um pouco a mais para o feminino, como costuma acontecer.

O filme mostra cenas de tom quase bucólico, misturando um realismo e um romantismo comuns aos filmes da época, não só os japoneses. Há romantismo na natureza que insinua uma representação do ardor da paixão juvenil. Há realismo nos diálogos de preocupação dos pais, que podem ser espelhado em qualquer família, e na descoberta dos jovens. Por ter um certo protagonismo feminino encontramos certas situações ainda raras no cinema. Meninas medindo e comparando o tamanho de seus seios, falando abertamente de menstruação, convivendo com os garotos como se fossem seus pares e nada os separasse.

É um pequeno filme, de curta duração, que pode passar desapercebido em uma carreira de mais de 90 obras. No fim, os pais chegam à conclusão de que a única maneira de evitar que seus filhos entrem em situações complicadas (como a gravidez adolescente de uma das personagens), é conversando abertamente sobre essas questões com eles. Conversando sobre sexo. Educando sobre sexo.

Spring awakens é um filme de 1946. Fez 75 anos este ano. É mais velho que eu, você, seus pais, talvez seus avós. Ele mostra claramente que não é um quadrinho besta, feito por e para adultos, que vai fazer mal às crianças. É o não-diálogo, o recalque.

Uma palavra de Kubrick
Para finalizar, deixo o meu super-trunfo das discussões sobre censura. O que Kubrick disse quando da recepção polêmica de Laranja Mecânica:

“O que eu quero dizer é que o filme foi aceito como uma obra de arte, e nenhuma obra de arte já fez algum tipo de mal à sociedade, no entanto muito mal à sociedade já foi feito por aqueles que desejavam protegê-la contra obras de arte que eram por eles consideradas perigosas”

Petit Paul — pela milésima vez aqui neste texto — é um grande besteirol, bem engraçado umas horas, em várias outras só bem bizarro. Mas não há nada que indique que não seja uma obra de arte. Se quiser, você pode até argumentar isso, que Petit Paul não é arte. Mas aí, nessa discussão, te deixo só. Boa sorte.

Cauby Monteiro

Cineasta e cineclubista, programa o Maldita Cineclube e dirige filmes para a produtora Asilo Febril, onde também produz o podcast sobre cinema Debate Soberano.