Bemdito

Amar no desentendimento

A memória como recurso de compreensão no amor
POR Camille C. Branco
(Foto: Stephanie Quiroz)

Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz

Belchior

Toda comunicação envolve, em maior ou menor grau, alguma forma de incompreensão. É a assunção hermenêutica básica, a constatação do mal entendido, do ruído comunicacional, das dificuldades da tradução, que é, em certo sentido, o pano de fundo dos gestos de interpretação. Esta também é uma lição de humildade existencial. A linguagem falha. Precisamos aprender o que fazer com esta precariedade: a de que há, no fundo de nossos léxicos, um empreendimento derrotado de partida.

A despeito de todos os impressionantes feitos tecnológicos da humanidade, ainda reside em nós a marca inarredável de que somos seres de linguagem, o que nos relembra (ou deveria) de que não podemos tudo, que o máximo que produzimos são truques de Deus, nas brechas da ficção. Penso que há nisto tanto beleza, quanto melancolia.

É também por meio da linguagem que expressamos, em parte — porque o corpo possui seus desígnios, mensagens, lágrimas, sensações, demandas — outro projeto que toca nas esteiras do impossível: o amor. Uma invenção humana para tentar vencer a morte (que continua a acontecer mesmo assim), o amor é também discurso amoroso. Por isso, gostaria de refletir neste texto sobre o que nos resta quando o discurso amoroso desanda na incompreensão mais radical.

Não estou falando do não entendimento, ou do estarrecimento diante de nossos inimigos, algozes, opositores. Nossas respostas, nesses casos, costumam ser mais imediatas: o susto diante do discurso deste outro é também a afirmação de uma posição de existência. Gostaria de pensar mais detidamente em uma cena de ordem mais delicada: no desentendimento ocorrido diante de nossos amores, amigos e aliados. De pensar em quando o discurso amoroso desliza para o conflito, a mágoa, a discussão.

O esquecimento é bastante simples e tentador nesses momentos. É fácil acessarmos as formas mais conhecidas de expressão da insatisfação que nos foram ensinadas — as palavras ferinas, a ofensa, o tom de voz alto, o ataque, o silêncio, deixar este outro no desamparo. Repentinamente, aquele a quem amamos e queremos bem acaba de se tornar a ameaça da qual precisamos nos defender, com as armas que nos foram ensinadas para isto.

No entanto, penso que o exercício memorialístico pode fornecer respostas mais difíceis e, ainda assim, feitas de mais dignidade nestes momentos. Me parece uma alternativa melhor, feita de respeito e compaixão, procurar rememorar que as pessoas que por vezes podem nos exasperar, irritar, magoar, foram, em um passado recente, as mesmas que tinham nosso carinho, amor, dedicação e confiança. Ressalto que não estou referindo situações envolvendo abuso, que devem ser combatidas dos modos mais frontais. Falo dos eventos cotidianos de conflito, aos quais somos convidados a reagir.

Este não é um chamado a uma postura simplificadora de perdão cristão, a despeito do mal provocado. Não é preciso perdoar, conciliar, contemporizar, desconsiderando a dor que se sente. Trata-se, na realidade, de uma proposição de lealdade para com as histórias de amor que vivemos. De compreender que você já amou e confiou naquele alguém e isto talvez seja suficiente para não estender a esta pessoa a violência das palavras mais rebaixadas e dos atos mais vis. Amar de forma profunda significa adentrar em um mundo que, em alguma medida, será diferente do seu. Isto é tanto o que provoca o amor, quanto a causa de alguns estranhamentos, em duplo efeito. Se quiséssemos cópias de nós mesmos, bastaria ficarmos sozinhos conosco. Mas queremos a alteridade. Nos encantamos pelo que as pessoas possuem para nos mostrar de novo. E isto exige coragem. Exige esperança. E exige respeito.

Me volta de imediato algo que minha mãe sempre me disse, da forma acertada como as mães algumas vezes conseguem dizer. Ela alertava que é preciso saber entrar e sair das situações com elegância e fineza de trato. Sem produzir humilhação, escândalos públicos, baixarias de toda ordem. Às vezes as amizades e os amores acabam. E às vezes nos desentendemos com nossos amigos e nossos amores, para, a partir disto, chegar a um novo patamar de profundidade afetiva junto a eles.

São eventos delicados, mas não é necessário que sejam trágicos. E o amor recíproco é um acontecimento muito raro. Significa que na vida há encontro, mesmo em meio a tanto desencontro. Considero este um episódio de grande significado. E rememoro as ocasiões em que passei caminhando em frete ao cemitério da Soledade em Belém e vi, pichada em uma de suas colunas, a frase: “Todo mundo vira pó”. Temos tão pouco tempo. Aprender a amar precisa ser aqui. Precisa ser agora. 

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.