Bemdito

A maior aventura é estar vivo

O que os novos super-heróis dizem sobre nós
POR Paula Brandão

“A tarefa do herói, a ser apreendida hoje, não é a mesma do século de Galileu. Onde então havia trevas, hoje há luz.”

Joseph Campbell

“Olhem para o céu! É um pássaro, é um avião? Não! É o Super-man!”. Os adultos de hoje certamente desde pequenos foram socializados com essa imagem de um super-herói também chamado de homem de aço, que podia tudo. Nascido em Kripton, tinha poderes físicos e mentais superiores aos demais humanos: uma força hercúlea, firme, bonito e com as valências de sexo positivas todas tinindo! O que isso mobiliza no imaginário dos homens? Quantas vezes os meninos colocaram a capa e o traje de herói e se sentiram seres superlativos? O que isso diferencia, a título de exemplo, das figuras de princesas femininas, com muitos avanços, diga-se de passagem?

Nas horas vagas, esse herói leva uma vida normal como Clark Kent, um repórter/jornalista do Planeta Diário, com um cotidiano ordinário, como qualquer homem. Enquanto vive nessa condição, o filme ou desenho animado mostra uma coisa meio sem graça, bem parecido com os nossos dias. Mas ao contrário de nós, ele pode jogar tudo para o alto, literalmente, e sobrevoar a cidade, salvando o mundo. Esse herói não subverte a lógica do universo: ele o domina para evitar o caos. 

Mas acontece que a DC fez com que o filho do Super-Man nascesse com essa missão. E mal surgiu nos quadrinhos, dando um beijo na boca, já mudou a lógica do papai, perfeitamente regulado, viril, revelando o ponto alto da historinha: o menino é bissexual. O que isso pode representar de risco para o machão do vôlei – que francamente, foi o primeiro milagre do quadrinho, tornar esse desconhecido, um conhecido homofóbico – ou para os filhos do presidente, ou ainda para você que tá lendo esse artigo? 

Joseph Campbell, em O poder do Mito, e em sua outra obra, O Herói de mil faces, avalia que “a mitologia ensina o que há por trás da literatura e das artes, ou seja, sobre a própria vida. É um assunto vasto, excitante, um alimento vital. Os mitos têm muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação, quando você passa da infância para as responsabilidades do adulto.” Ou seja, os filmes e histórias em quadrinhos (HQ’s) têm servido para que gerações aprendam a lidar com os mistérios da vida, com as angústias que um garoto sente sozinho e pode extravasar viajando no universo interestelar! Quem nunca encontrou respostas, submerso em outra dimensão nos filmes Star Wars, ou vendo a força da mulher-maravilha para se sair das maiores dificuldades que lhes são impostas?

O jovem não consome o mito ou herói do jeito que é mostrado. A imaginação tem grande força, e a ideia é que as antigas histórias, contadas há séculos, possam beber nas fontes da contemporaneidade. A própria linguagem precisa da aderência aos nossos tempos para que se torne atrativa. E cada época tem os seus legítimos heróis, aqueles que representam as necessidades atuais. O elemento é o hoje! Se temos heróis mudando de etnia, orientação sexual e gênero, é porque a sociedade em que vivemos está mais aberta para respeitar tais demandas!

Cada um que assiste ou lê, a seu modo, faz uma certa atualização conforme suas próprias questões. Os grandes heróis estão ali, ao lado das pessoas, para que elas conheçam mais de si mesmas e para lhes mostrar que elas têm companhia para enfrentar suas jornadas, não estão sozinhas. Então porque um super-herói negro? Quantas vezes for possível é importante que falemos na representatividade. Sobre o que significa para uma criança negra entender que os grandes homens na tela podem ser de sua cor. Ou seja, que os super-heróis não são todos brancos! Assim, como os adolescentes vivem as angústias de suas sexualidades! E que bom que é um herói que tem um filho bissexual. Essas questões são afinadas com o nosso tempo, e tudo que vimos discutindo, há séculos, e que precisam ser superadas. Estreou dia 04/11, Eternos, da Marvel, nos cinemas nacionais. É a primeira vez que o herói é gay e a heroína surda. Aguardemos o estardalhaço que virá nas redes, as fakes, as charges ignóbeis e tresloucadas.  

A franquia milionária 007, sofreu grande especulação para ter um Bond negro ou mulher. Eternizado por Sean Connery, homem viril, conquistador e que não se apaixona pelas mulheres, vivido há mais de seis décadas por homens brancos, terá, na sua continuidade, um ator negro. Mas não de outro gênero. A produtora de 007, Bárbara Broccoli, disse que “James Bond será um personagem masculino. Espero que tenhamos muitos filmes feitos com mulheres, para mulheres, por mulheres. Mas eu não acho que uma mulher devia interpretar um personagem masculino.”

Pois é, mas não o filme dela! Imagina a reviravolta que ela faria se o agente 007 pudesse romper com essas características e com o gênero? Já pensou uma mulher, Bond, super-agente, vingando 60 anos de descartabilidade como objeto sexual do herói? Isso aí ninguém se incomoda ou se pronuncia pelas redes sociais! Mas eu pago pra ver!

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).