Bemdito

A alegria subversiva de se conservar vivo

Para quem não se abarca mais, um convite para ser a própria guerrilha, enxergar as miudezas, dançar e cantar alto
POR Glória Diógenes
Foto: Ahmad Odeh

Para quem não se abarca mais, um convite para ser a própria guerrilha, enxergar as miudezas, dançar e cantar alto

Glória Diógenes
gloriadiogenes@gmail.com

Ele Miguilim havia de achar um jeito de sarar com Deus
(Guimarães Rosa)

Nunca escutei tanto falar em dor. Ela explode em falas, imagens, em desfile de obituários que percorrem as redes sociais digitais, nas conversas por meio de vídeos, nos diálogos do eu-consigo-mesmo. Imagens de perda, de morte, atravessam supostas cancelas entre o mundo de fora e o de dentro. Invadem recantos da vida privada. A dor finca-se no desconforto do não dormir, na exaustão de corpos fatigados do trabalho remoto e doméstico, nas almas cansadas do existir entre paredes de susto e medo. Uma ampliada tragédia histórica estreita-se aos dramas íntimos. A frase “eu não aguento mais” multiplica-se como erva daninha. Gente sem gente por perto, gente isolada das famílias, gente mergulhada na saudade por vidas partidas, gente exilada de si.

Não há porta que possa nos esconder enquanto passa. Quando criança, tinha essa mania, brigavam comigo, ficava triste, procurava a mais segura e me ausentava. Uma vez, na escola da pequena cidade do interior em que morava, fui repreendida de forma rude por querer brincar com gansos criados pelas freiras. Havia uma porta bem grande no refeitório, ideal para ocultar a indignação. Lá me escondi, adormeci, desapareci. A cidade entrou em convulsão. A menina sumiu. O escape trouxe o gosto bom do esquecimento. Agora, não há refúgios.

Lá fora, não apenas um vírus se multiplica. O fascismo genocida, como fina poeira, espalha-se com o vento, invade mesas, o sono, o sexo, os afetos, os sonhos de futuro. Instala-se sem que se deixe entrar. Age na extorsão da vida. Essa política da dor enfraquece a força maior, a alegria, como diz Clément Rosse. Disso meu corpo sabe. Lembra bem. Era 1989, final da década em que o Brasil foi às ruas, em que os tantos movimentos se organizaram nas lutas do cotidiano e nas mais diversificadas demandas por direitos. Havia uma eletricidade. Recordo dos arrebatamentos ao se entoar numa só voz o Sem Medo de Ser feliz, a animação das esquinas no farfalhar das bandeiras, as paqueras que ali rolavam e o brilho da nova estrela. Nunca dancei tanta ciranda. A alegria assumia a forma irreverente, sua face perigosa – o gosto de se saber vivo. Desenhou-se aí o risco, a fragilidade dos donos do poder. Eles não suportam os afetos alegres, como diz Espinosa.

Os fascistas são alérgicos à alegria. Têm dívidas com o sofrimento. Mascam o fumo do ressentimento. Diante do entusiasmo de um povo que começa a acreditar, mesmo que gaguejando, tateando, romper os grilhões da escravidão, a máquina totalitarista da dor ensaia sua engenhosa reação. Eu, você, costumamos creditar tudo isso a um nome, a um cargo, a um partido. Ou de outro lado, a uma aliança macabra de forças. É também, e muito mais. A política é caudaloso rio imaginário. Malha descontínua de circuitos, tensões e afetos. Foi possível auscultar o que ainda estava ali, em estado de latência. A memória da tortura, a voracidade do mando, a violência diária contra mulheres, o escárnio cruel contra gays e travestis, o gosto adocicado do ódio aos negros, tudo vibrando na frase armamentista de um velho faroeste “minha especialidade é matar”. Entoa a voz ancestral dos senhores de engenho, dos líderes das milícias, dos mandantes da pistolagem, dos chefes das capitanias hereditárias. Artefatos e dispositivos disponíveis para a produção da dor.

Foi sendo bolado um plano ardiloso, enredado em fios do passado no presente. Instaurar o mal nos primeiros passos da alegria de um Brasil criança. Tontear, embaraçar, desalinhar a vida ali, onde pulsa seu enlevo de afirmação. Um corte na carne, nas marcas não cicatrizadas do golpe de antigas navalhas. Esse é o mal absoluto. Eu sei, você também sabe. Olhar o mal dói muito, dói duas vezes, do sofrimento que perfura a pele e da cara da dor mirando um possível novo ataque. Tem doído tanto que qualquer ensaio de alegria aparece mesclado por sentimentos de culpa, contravenção, de heresia.

O plano da desalegria fomenta, com exímia eficiência, o projeto político da dor. E parece não se ter o que fazer. Mas, se tem, e muito. É uma tarefa diária. Um tipo de guerrilha de si. E não se acaba com a dor, correndo dela. Não se trata disso. De pensar em estratégias negacionistas de salvação, ou de falaciosa autoajuda. Trata-se de um tipo de impertinência, de insistência. Danço quase todos os dias. Fiz uma lista no Spotify cujo nome é Dançar Só. Diante dos primeiros passos, nas primeiras músicas, a situação parece patética. Tropeço na tristeza. Lá para a terceira já me pego cantando alto – Tu, pessoa nefasta, solta, com a alma no espaço, vagarás, vagarás, te tornarás bagaço, pedaço de tábua no mar. Passei a enxergar miudezas. Há um coração desenhado no asfalto após a chuva, uma frondosa árvore na minha rua podada nesse formato, e como mato, surge no pequeno jardim uma trepadeira com raízes expostas, rizoma de corações para todos os lados.

A alegria permite sobreviver à sua própria condenação. Ela tem contas a acertar com a vida, enquanto a tristeza debate-se sem descanso, sendo essa sua infelicidade. Camille Castelo Branco, num texto recente publicado no Bemdito, se perguntou como continuar amando em tempos de isolamento social? O que sobra do amor, sem gesto amoroso? Penso que resta a alegria do ato subversivo de se conservar vivo. Vez em quando, ensaio passos com Elza – eu não vou sucumbir, eu não vou sucumbir, avisa a hora que tremer o chão. Amiga é agora, segura a minha mão. Espalmo, como quem louva, a mão esquerda e a direita.

A cada nova manhã, miro a estrela. Mesmo quando não vejo, imagino-a. Talvez seja esse o enigma, Camille, o que sobra é o que falta. Imperceptíveis gestos amorosos que, desavisados, permanecem. A saudade dos amigos e parentes que se foram é tocha de vida que queima ao contrário. Alumiam o que há de vir. Por esses dias perdemos um homem-música, um homem-gentileza, um homem-passarinho. Ele assovia no quintal de nossas almas. Escuta? Espalha-se em nós. Como disse ele, com seu humor fino, a terra que te pariu já não te abarca mais. Nosso lugar é aqui e longe. Lustro as asas. Sigo o rito, Só sai do abismo quem sabe voar, como diz Paulina Chiziane, em O Canto da Perdiz. Deito bandeiras ao sol. Com o zelo de aprendiz, vou espreitando os mistérios da dor. Ser passagem, dia que vai amanhecer. Ser a alegria que morre e vive lá. Olê, Olê, Olê, Olá…..

Para o homem que não se abarca mais, Gilmar de Carvalho

Glória Diógenes é doutora em Sociologia e professora da UFC. Está no Instagram.

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).