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Os recursos dos processos de Lula vão ao Plenário. O que isso significa?

Explicamos o que foi debatido pelo STF e por que o voluntarismo da corte prejudica a autoridade e a credibilidade do Poder Judiciário
POR Juliana Diniz
Ricardo Stuckert

Explicamos o que foi debatido pelo STF e por que o voluntarismo da corte prejudica a autoridade e a credibilidade do Poder Judiciário

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

A sessão do Supremo Tribunal Federal que ocorreu ontem, quarta, iniciou o julgamento dos recursos interpostos pela defesa de Lula e pela Procuradoria Geral da República. Por ampla maioria, a Corte decidiu que os recursos devem ser apreciados pelo Plenário e nos ofereceu mais uma oportunidade importante para observamos o modo como o Supremo flerta com o casuísmo judicial. Para entendermos o que ocorreu será preciso voltar nossa atenção não só para o regimento interno do STF, mas também para o comportamento do ministro Edson Fachin e sua relação com a 2ª Turma do tribunal. Vamos por partes, porque o assunto é complicado.

I – Resgatando a história do caso: a dança regimental do relator Edson Fachin

Vou recuperar alguns fatos para detalhar o fio narrativo da história. O primeiro movimento importante foram duas decisões do ministro Edson Fachin no contexto de habeas corpus impetrado por Lula em novembro de 2020, em que o ex-presidente pedia o reconhecimento da incompetência da 13ª Vara de Curitiba e, consequentemente, a anulação das decisões proferidas pelo juízo em que respondia Sergio Moro quando houve a condenação. 

Na primeira manifestação, Fachin não concedeu o pedido de liminar e decidiu afetar a análise da questão ao plenário do STF. Afetar, nesse caso, significa deslocar um processo que seria apreciado originalmente pela turma para que seja julgado pelo plenário. Não é um movimento corriqueiro – só pode ocorrer em situações muito excepcionais, previstas no regimento interno do Supremo Tribunal Federal. 

Diante da decisão de Fachin, a defesa de Lula interpôs um recurso chamado embargos de declaração, que cabia ao próprio relator analisar. O ministro acolheu o recurso e voltou atrás na sua decisão, não só para “desafetar” o que tinha antes afetado, trazendo novamente para a 2ª Turma, como para conceder a limitar, declarando a incompetência da 13ª Vara de Curitiba, anulando todas as decisões e tornando, por consequência direta, Lula novamente elegível. Isso se deu no início de março deste ano. 

As consequências nós conhecemos: o ministro Gilmar Mendes viu a manobra de Fachin como uma tentativa de inviabilizar o julgamento da suspeição de Moro e decidiu pautar, ato contínuo, outro habeas corpus de Lula em que se discutia a parcialidade de seu julgador. Semanas depois, a 2ª Turma, por maioria, decidiu que Moro era suspeito, impondo derrota a Edson Fachin, que não queria ver a suspeição julgada. Essa decisão, somada à que foi proferida por Fachin no outro habeas corpus, representou uma dupla vitória para Lula: Moro não só foi declarado incompetente por Fachin, como suspeito pela 2ª Turma. 

Visivelmente incomodado com o resultado, o ministro Edson Fachin aproveitou a oportunidade oferecida com a interposição de recursos pelas partes e decidiu “afetar” novamente as questões ao Plenário – tanto a discussão sobre competência, como a discussão sobre a suspeição. O motivo é bastante evidente: isolado na 2ª Turma, Fachin sabe que não terá maioria para fazer prevalecer suas teses quando o assunto é Lava Jato, Sergio Moro e Lula. 

II – A discussão técnica de fundo: afetar ou não afetar?

Alguns esclarecimentos técnicos podem ser úteis. Ao contrário do que o leigo possa imaginar, não há, no STF, uma hierarquia entre a turma e o plenário, de modo que o plenário não tem como regra a atribuição de rever as decisões das turmas (que são duas). A distribuição de trabalho entre as turmas e o plenário tem por objetivo otimizar e racionalizar a atividade do tribunal, assim, quando o regimento define que tal questão será julgada por uma das turmas equivale a dizer que, naquela hipótese, a turma representa a própria corte.

 Em situações muito, muito especiais, o regimento prevê que é possível afetar (isto é, deslocar) a análise de determinada questão da turma para o plenário. São hipóteses muito mais relacionadas à uniformização do entendimento do tribunal em casos de jurisprudência oscilante, nunca tendo a ver com a qualidade das partes envolvidas ou mesmo com o grau de comoção popular mobilizado por um processo. 

Essa afetação ao plenário, que cabe ao relator, deve ocorrer sempre antes do julgamento do mérito da questão, como é obvio; do contrário, seria apenas um “jeitinho” de transformar o plenário em instância recursal da turma. Na discussão sobre a competência, Fachin decidiu de forma monocrática em habeas corpus para aplicar entendimento pacificado no tribunal (a matéria, a rigor, nem precisaria ir para o colegiado para ser referendada). Na decisão sobre a suspeição, já há julgamento de mérito proferido pela 2ª Turma do STF, o que significa dizer que o Supremo Tribunal Federal, enquanto tribunal, já exauriu a questão – esse ponto foi bem enfatizado pela ministra Carmen Lúcia durante sua manifestação no julgamento de ontem. 

III – O tribunal do jeitinho e o processo de exceção em matéria de Lula

Como o regimento interno do STF tem natureza normativa, sabemos que os ministros não podem dispor das normas regimentais conforme a conveniência, do contrário não estaríamos mais falando de Direito ou de devido processo legal. 

No julgamento de ontem, o que causa estranhamento é mais um exemplo de como a corte atendeu sua conveniência para, casuisticamente, decidir como aplicar os próprios precedentes e o regimento quando o réu em questão é Lula. Sabemos que, do ponto de vista político, Lula é certamente um ator importante, que está no centro das articulações eleitorais para 2022, mas, do ponto de vista estritamente jurídico-processual, sua relevância política deveria ser indiferente para a sorte do processo. 

Para que não se transforme o processo em instrumento de exceção, é fundamental que a regularidade dos ritos seja mantida independentemente de quem seja o réu. Fosse o réu o próprio diabo, o tribunal deveria reconhecer a tentativa evidente do relator Edson Fachin, cujo entendimento é minoritário, de evitar sua derrota no colegiado. Ele o faz ao manobrar a remessa do processo ora da turma para o plenário, ora do plenário para a turma. Para Gilmar Mendes, não se pode confundir discricionariedade com arbitrariedade. 

Do mesmo modo, é inaceitável que o plenário reveja a decisão da turma sobre a suspeição, porque não tem competência regimental nem constitucional para tanto. Não cabe recurso ao plenário no caso porque, ao julgar, a turma é o próprio STF, como vários ministros fizeram questão de salientar. Foi o caso de Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio de Melo, Carmen Lúcia e Gilmar Mendes.  

Ontem o tribunal decidiu, de forma equivocada, que a afetação ao plenário deve ser mantida. Foi Lewandowski, visivelmente incomodado e chamando todos à responsabilidade histórica, que chamou atenção para absoluta singularidade com o que o tribunal estava tratando aquele recurso suscitado no habeas corpus de Lula. Hoje, os onze ministros deverão iniciar a decisão sobre o mérito: mantém-se o reconhecimento de incompetência? Modifica-se o julgamento sobre a suspeição? 

Qualquer que seja o resultado, o STF já amanhece em desvantagem, o que é péssimo para sua autoridade e credibilidade, e muito arriscado nestes tempos em que o Presidente da República ameaça dia sim, dia sim a integridade da corte. Ao agir com voluntarismo contra Lula, o Supremo dá munição para que Bolsonaro o acuse de voluntarismo em todas as suas tentativas corretas e legítimas de contenção dos abusos do Executivo governado por ele. Não é ruim apenas para a Lula, é ruim para todos nós.

O caso Lula levou o Poder Judiciário e o STF a mostrar que podem agir politicamente em desfavor do devido processo legal, com consequências gravíssimas para o processo eleitoral e a história brasileira.

O tribunal tem uma boa chance, oferecida novamente pelo ex-presidente e sua batalha judicial, para corrigir seus rumos e voltar ao que deveria ter sido a regra desde o início: seja quem for o réu, o que deve prevalecer é o Direito. 

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.