Bemdito

Notas sobre O Conto Da Princesa Kaguya #3

No último texto do ensaio sobre a animação japonesa, uma análise do final do filme, que remonta à memória e aos sentimentos humanos
POR Cauby Monteiro
Foto: Reprodução

Para finalizar esta pequena série de textos com reflexões sobre a obra-prima de Isao Takahata, só me resta considerar o final e as consequências que ele traz em relação à obra, à carreira de Takahata e às suas proposições da finalidade da animação.

Algo que venho ressaltando nos dois últimos textos é de que forma a narrativa  do filme se adequa ao propósito reflexivo de Takahata. Da própria escolha de fazer um filme de princesa, colocando-o em contato direto com a tradição de animação mais conhecida, até as próprias condições biológica, cultural e social da personagem principal: seu crescimento acelerado ressaltando sua posição metafórica de ser a animação em si, sua liberdade e seu posterior aprisionamento como a representação da relação entre a arte da animação e a linguagem, e seu poder libertador das amarras figurativas e construtivas dessa linguagem, mais uma vez reafirmando o caráter da Princesa como representante máximo da animação.

Nenhum desses elementos, porém, exige menos esforço interpretativo quanto o final do filme. É nele que percebemos que tudo que vimos até então serve não só esse desejo quase teórico de Takahata, mas também se figura e se modela como aquilo que todo conto de fadas é: uma história. Para quem não lembra, após ser atacada pelo imperador, Kaguya utiliza seus poderes para escapar, o que faz com que o povo de onde ela veio decida ir buscá-la. Mesmo com o seu clamor para que a deixem ficar, e a última felicidade de encontrar o amigo de infância e todo o esforço de seus pais para que não a levem, a decisão é final.

E vindos de sua morada, a lua, em uma nuvem, figuras de paz descem à Terra para levar a princesa (desculpem, mas este não é um texto acadêmico e, portanto, não conheço qual a relação cultural desses seres, sua relação com religião ou qualquer outra coisa, nem mesmo sei o que os nomes significam, mas acho curioso que o Japão tenha chamado uma sonda lunar de Kaguya). Quando atacados, esse povo da lua transforma as flechas em flores e, com o seu movimento delicado, fazem adormecer todos os habitantes do palácio da princesa. Kaguya é levada até a nuvem como uma figura imóvel e impotente diante daqueles seres celestiais.

Ela tenta convencê-los uma última vez para que a deixem ficar, e eles perguntam por que ela gosta tanto de um lugar sujo e mau como aquele. Ficamos sabendo que Kaguya foi banida para a Terra após sentir tristeza ao ouvir uma canção de outro ser celestial sobre o nosso mundo. Ela argumenta que justamente as falhas do mundo terrestre são o que fazem a sua beleza. Os lunares a cobrem de um manto que a transforma em um ser como eles, em paz, sem tristeza e, portanto, sem a causa dela: a memória.

           Movimento e memória se confundem e, sem querer entrar em discussões filosóficas mais profundas e fora da minha alçada, uma não existe sem a outra. Se uma animação, então, é puro movimento, significa que ela é pura memória. Entendemos que, para Kaguya, o que nos torna humanos é a nossa capacidade de lembrar, de perceber o movimento das nossas vidas. Tristeza, maldade, felicidade, dor e paixão, quando transformados em lembranças, tornam-se o combustível que nos permite viver e conduzir nossas vidas através da estrada do tempo. A dor que ela sentiu ainda vivendo na lua, ao ouvir uma canção, um lamento de saudade, retirou-a dessa formação pacífica e estática dos seres celestiais. Tornou-a humana, portanto, impura na concepção de seus pares. A culminação narrativa e filosófica da obra, portanto, afirma prontamente que falar de animação é falar de vida. Não vivemos no nada, na estase. Kaguya ousou animar-se, ousou ter alma. E isso a fez cair do céu.

No retorno para sua terra, a Lua, Kaguya é mais uma entre aqueles seres perfeitos. Vemos seu rosto, primeiramente impassível, divino, lentamente ganhando movimentos quase imperceptíveis, sua boca se abre, seus olhos ficam levemente arregalados e, diferentemente de todos à sua volta, ela se move! Vira para trás subitamente, com um olhar marejado para ver, uma última vez, a Terra, sua saudade.

Ao retornar à Lua, ela volta a ser aquele bebê do início do filme. Ela se torna para nós uma lembrança de alguém que passou e se foi, uma saudade em si. Portanto, a moonchild que ela vira, mesmo distante da Terra, parece afirmar que não devemos mais olhar para a Lua com sonhos de perfeição, mas como um espelho de nós mesmos. Porque, no fim, é isso que Kaguya se torna, mais que uma metáfora da animação, mais que um ser celestial, mais que uma filha, mais que uma humana, mais que uma princesa: Kaguya somos nós e a memória de quem fomos.

Cauby Monteiro

Cineasta e cineclubista, programa o Maldita Cineclube e dirige filmes para a produtora Asilo Febril, onde também produz o podcast sobre cinema Debate Soberano.