Bemdito

Notas sobre O Conto Da Princesa Kaguya #1

Último filme da carreira de Isao Takahata, animação é baseada em um conto popular japonês do século X
POR Cauby Monteiro
Reprodução: filme O Conto Da Princesa Kaguya

Último filme da carreira de Isao Takahata, animação é baseada em um conto popular japonês do século X

Cauby Monteiro
cauby.ecm@gmail.com

No debate conduzido após a sessão de O Conto da Princesa Kaguya, na mostra de melhores do ano de 2014 no Cine CCBEU, um amigo perguntou por que eu fiz tanta questão que aquele filme estivesse entre os 5 escolhidos. Na época, foi difícil dizer e o debate que se seguiu foi um que me satisfez pouco. Não pude colocar nele a maioria do que queria falar do filme e não consegui, minimamente, descrever a razão de eu achar que aquele filme mereceria o lugar que eu o tinha colocado.

Não foi a primeira vez, nem será a última, que essa incompletude se dá numa sessão de cineclube, que tem na sua própria concepção o improviso de uma conversa. Mas foi de longe a ocasião que mais me incomodou e que, vez ou outra, retorna para me assombrar, e me vejo refazendo aquele dia de janeiro, há 7 anos, tentando falar o que não consegui. Este texto é o primeiro de (talvez) dois a tentar recuperar o momento daquela sessão. E exorcizar de vez essa falha.

Uma das razões de ter sido um filme tão fundamental em 2014 (mesmo tendo sido lançado em 2013 no Japão) era que sabíamos que seria o último filme de Isao Takahata. O mesmo seria dito do belíssimo e meio subestimado Vidas ao Vento, do seu amigo – e sócio no estúdio Ghibli – Hayao Miyazaki, mas todos suspeitávamos que dificilmente o espírito irrequieto de Miyazaki o deixaria se aposentar – e as notícias de que está fazendo uma nova animação foram confirmadas sem muita surpresa dos fãs.

Mas Takahata era diferente, mais velho que Miyazaki, mais doente, tendo levado 14 anos para terminar Kaguya, dificilmente faria outro filme. Sua morte em 2018, aos 82 anos, veio sem surpresa. Claro que nada disso teria valor se o filme não correspondesse a esse encerramento de carreira. Afinal, o que teria Takahata, cineasta de muitas faces, a nos mostrar uma última vez? A dúvida foi agraciada pelo que talvez seja a reflexão mais profunda de uma animação sobre sua arte. Sobre o poder da animação, sua capacidade criativa e seu modo de sobrepor-se aos obstáculos do cerceamento dessa criação. É aquela obra definitiva, ou seja, uma que fecha um ciclo, ao mesmo tempo que ilumina caminhos para outros se desenvolverem.

Uma peculiaridade de Takahata é o fato de ele não desenhar. Diferentemente da maioria dos animadores, que dispõem de um estilo de desenho (dos personagens, da arquitetura, das paisagens) facilmente identificável e, na maioria dos casos, constante, os filmes de Takahata apresentavam mudanças significativas em cada um. O estilo clássico dos anos 60 em Horus, o Príncipe do Sol ao realismo radical de Memórias de Ontem, ao estilo infantil, rabiscado, de seus últimos dois filmes, Takahata experimentou quase tudo que a animação japonesa poderia oferecer nos mais de 40 anos em que esteve em atividade.

Esse experimentalismo se fez presente inclusive no tipo de história que ele contava. Adaptou clássicos da literatura mundial para o projeto World Masterpiece Theater (Heidi, Cuore, Anne of Green Gables). Da literatura japonesa (Goshu, the ceilist e o próprio Kaguya), Meus Vizinhos, os Yamadas é uma adaptação de uma tira cômica no estilo yonkoma e Memórias de Ontem, a adaptação de um mangá realista sobre as lembranças e os sentimentos de uma mulher de 27 anos. Meus Vizinhos, os Yamadas marca também um momento de importante transição técnica, com o filme tendo sido feito inteiramente em computador, permitindo movimentos de câmera ousados e efeitos pouco comuns na animação da época. Com a mesma técnica, será feito O Conto da Princesa Kaguya.

O filme é baseado em uma narrativa popular japonesa que data desde o século X, mais conhecida como Conto do Cortador de Bambu. A escolha por figurar a “princesa” no título, contudo, não é aleatória. Parece-me que é uma clara decisão de Takahata em situar o filme na mais lembrada e decisiva tradição da animação (ocidental ou não). Um desenho de princesa, portanto, afirmando desde o título que, sim, este filme é uma animação, baseado em um conto popular, como geralmente são.

A escolha específica do conto não é ao acaso também. A princesa Kaguya é mandada pelos céus para um humilde cortador de bambu, que a descobre dentro de um caule desta árvore. Ele e sua mulher adotam a criança, que cresce de maneira rápida e vertiginosa, tal qual a árvore em que nasceu. As outras crianças dão a ela o apelido de takenoko (broto de bambu). E de fato vemos, em planos sem cortes, a Kaguya crescer na nossa frente. Ela se apropria do movimento da vida de maneira particular, com pressa para crescer e viver tudo que o mundo tem a oferecer.

É una com a natureza, corre pela floresta, junto com os porquinhos, vê as flores brotarem e os insetos se alimentarem delas. Tudo é rápido, pois tudo está em movimento, de acordo com a Terra. A animação é a única arte que, sem utilizar-se de artifícios, consegue mostrar isso. Em Memórias de Ontem, enquanto os personagens colhiam flores em uma plantação, o sol nascia e banhava-os de luz divina. Isso é quase impossível no cinema, sem utilizar-se de todos os efeitos e enganações próprias da arte (um exemplo é quando Maureen O’Hara ria de quando falavam da “sorte” do Ford, e lembrava que para um vento quase místico que acontece em Como Era Verde Meu Vale, Ford precisou colocar um ventilador gigantesco).

O cinema briga com o acaso, seja para domá-lo, seja para se submeter a ele. A animação é o acaso constante. Como tudo é criado, folha a folha, frame a frame, pelas mãos habilidosas dos animadores, há pouca diferença em fazer um bebê engatinhar de uma maneira assustadoramente realista para um desenho tão estilizado quanto Kaguya é, ou em fazer as máquinas mágicas de Miyazaki voarem. Ambos são milagres.

Quando, em 1989, são lançados em uma double bill, O Túmulo dos Vagalumes e Meu Amigo Totoro, delimitou-se a preguiçosa diferença entre as duas figuras centrais do Ghibli. Takahata seria o cineasta realista, que adaptou um dos livros mais tristes do Japão, que conta a história de duas crianças morrendo de fome durante a Segunda Guerra Mundial. Já Miyazaki seria o cineasta fantástico, que conta a história de duas crianças que encontram uma criatura mitológica, capaz de fazer árvores crescerem e de voar; e um gato-ônibus que percorre os vales com a mesma graça e elegância que esperamos dos felinos.

O que as pessoas não viram é como essa diferença, mais do que afastar os dois mestres, na verdade só acentua o caráter complementar dessa dualidade realismo/fantástico na animação. Desde o início de Túmulo dos Vagalumes, na cena do reencontro dos irmãos no trem, há uma esperança mística na vida após a morte que só um pacifista como Takahata poderia ter. A desgraça da situação é pontuada por momentos de extrema beleza, em que esses pequenos milagres acontecem para atenuar a dor daquela tragédia.

Da mesma forma, na superfície de uma aparente leveza de Meu Amigo Totoro, esconde-se a trama que serve de pano de fundo para os eventos fantásticos. As crianças se mudam para esse interior mágico japonês porque a mãe delas está se tratando de uma doença da qual não sabemos a gravidade. Durante o filme, fica a sensação de que todo esse aprendizado sobre a natureza, de que essa aventura mágica, esse encontro com o fantástico, serve como uma preparação ao inevitável, à partida e transformação em memória de um ente querido.

Curiosamente, Vidas ao Vento e O Conto da Princesa Kaguya sofreram uma recepção similar, mas invertida. Agora era Miyazaki acusado de virar as costas para a fantasia e produzir um filme “realista” (por mais que a primeira sequência seja uma de sonho). Takahata, por sua vez, surpreendeu ao fazer uma obra “fantástica”. Sobre tudo isso, gosto da formulação de Godard acerca de uma polarização parecida que dominou (e de certa forma ainda domina) o cinema: “O que interessava a Méliès era o ordinário no extraordinário, e a Lumière o extraordinário no ordinário.”

O voo de máquinas engenhosas e de criaturas gigantes feitas de vento não teria metade do efeito de maravilhamento, sem a gravidade a lhes darem peso e a lhes situarem no mundo como corpos críveis. O mesmo vale para uma garotinha correndo na rua depois de se apaixonar pela primeira vez e ver que o chão saiu, literalmente, de seus pés, e que é só a pureza do sentimento que a conduz a voar pelos céus.

Kaguya situa-se justamente nesse ponto de inflexão, onde o extraordinário vira ordinário e vice-versa. O que é preciso saber é que, com seu crescimento acelerado a olhos nus, com a vida correndo nas suas veias de maneira palpável, sendo uma personagem com todas as suas possibilidades atingidas somente na animação, Kaguya, a princesa, não o filme, torna-se o símbolo mais perfeito dessa arte. Uma pena que, como um pássaro livre, queiram prendê-la em uma gaiola de riqueza.

Retomamos na coluna que vem a partir desse ponto.

Cauby Monteiro é cineclubista e cineasta.

Cauby Monteiro

Cineasta e cineclubista, programa o Maldita Cineclube e dirige filmes para a produtora Asilo Febril, onde também produz o podcast sobre cinema Debate Soberano.