Bemdito

A coleção de fotos da minha finada avó

Fotografias antigas não revelam apenas a aparência de um registro, mas memórias que guardam além do que se pode ver
POR Tiago Pedro
Foto: Iana Soares

Uma coleção singela de fotografias antigas não revela apenas a aparência de um registro, mas um rastro de memórias que guardam além do que se pode ver

Tiago Pedro
tiagofelps@gmail.com

Pensei se devia escrever algo sobre a antiga carteira de minha avó quando as fotos que encontrei guardadas nela são mais eloquentes que qualquer narrativa que eu pudesse transmitir. Como começar um texto já fadado ao fracasso?

Ainda quando criança me espantavam os retratos que havia na sua casa, principalmente as fotos-pinturas dela e de seu marido. Meu avô trajado de terno, minha avó de vestido caro e colar de ouro. Por mais que que eles nunca tenham tido aquelas roupas e adereços, que aquela imagem fosse uma ficção, eu sabia que eram eles e os reconhecia na imagem. Seus desejos, seu universo de histórias: aquela foto os representava.

Meu espanto continuou existindo anos depois. Sempre que olho um retrato, que faço um retrato, não é a imagem imediata que vejo. O verdadeiro retrato é invisível, ele é tudo o que está antes daquele encontro, é tudo o que fica depois do encontro fotográfico e cinematográfico. Hoje, quando ainda vejo os olhos de meu falecido avô em uma fotografia, olhando a lente, em uma velha foto que fiz dele, vejo um olhar cheio de passado, um olhar cheio de futuro, e esse espanto sei que somente eu tenho.

Hoje o que me move é tentar transmitir esse espanto, diante de um retrato, para outras pessoas. Roland Barthes, em Câmera Clara, revela a mesma admiração de ver o invisível de uma foto, por isso escreveu um livro que ele achava que era só dele.

Passaram-se os anos, eu estudando cinema longe de casa, em Cuba e depois no México. Na volta, encontrei na carteira de minha finada avó todo um sentido para esse tempo de estudos: a antiga coleção dela me despertou para o meu próprio ato fotográfico. Imagens resgatadas pelo afeto, de uma agricultora do Sertão do Cariri, pobre e analfabeta.

Na carteira, uma foto de documento, feita em câmera lambe-lambe, a forma fácil e barata de ter uma foto, que muitas vezes vinha por necessidade de ter a imagem num papel oficial. Uma foto de um finado tio, única foto dele, em seu caixão. Uma foto da capelinha inaugurada. Uma foto ao lado da imagem do Padre Cícero. Pequenos retalhos e documentos de uma região.

Quando faço um retrato (fotográfico ou cinematográfico), busco o espanto das memórias, da ficção da memória, da memória involuntária, justo o que a imagem não pode me dar, mas está ali. Minha avó, mesmo sem poder ler, sabia viver esse encanto, e coletou sua memórias nesse arquivo de afetos, um dossiê de nossa ancestralidade, tão íntimo que me causa espanto também.

Por isso, deixo uma pergunta: a singela coleção de imagens da minha vozinha não seria preciosa, algo como uma pequena cartografia de um sertão que é só seu?

Tiago Pedro, cineasta e fotógrafo documental

Tiago Pedro

Tiago Pedro é fotógrafo documental e cineasta, graduado pela Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de Los Baños.